segunda-feira, outubro 20, 2025

No Teatro Camões recordando “Os Maias” de Eça de Queirós, agora bailado pela CNB

 

Foi no passado dia 16 que o Atrium rumou até à beira Tejo, ao Teatro Camões para assistir ao bailado que evoca, reinterpreta e dá vida a personagens e a questões intemporais, criadas pela pena implacável de Eça de Queirós, apresentando a dança como linguagem de emoções, que transporta para o presente o tempo passado, num diálogo muito belo.

Com coreografia do diretor da Companhia Nacional de Bailado, Fernando Duarte, a peça tem curadoria musical de Andrea Lupi, cenografia de José Manuel Castanheira e figurinos de José António Tenente, além de um elenco de mais de trinta bailarinos.

A parte musical conta com pianista António Rosado e solistas da Orquestra de Câmara Portuguesa, estando a curadoria musical a cargo de Andrea Lupi, que optou por compositores como o belga César Franck, contemporâneo de Eça, e a austríaca Maria Theresia Von Paradis, que viveu a viragem do século XVIII para o seguinte, estabelecendo uma linha através do tempo da ação.

Como afirmou Fernando Duarte, "A ideia não foi competir com o livro, porque o livro ganhará sempre, mas antes impulsionar a sua (re)leitura, quer para quem já o conhece, quer para quem poderá ficar desperto para o fazer". Na verdade, entre os atriunistas presentes vários foram os exercícios de recordação das leituras feitas à obra de Eça, mais tarde completados com a leitura de resumos da mesma.

Recordemos então que “Os Maias” foi uma das obras mais conhecidas do escritor, publicada em 1888, que narra a história de três gerações da família, centrando-se na mais recente, com a história de amor entre Carlos e Maria Eduarda, dois dos personagens que parecem estar à mercê de um destino que os conduz à perdição.

O livro encerra uma crónica de costumes, retratando, com rigor fotográfico, a sociedade lisboeta da segunda metade do século XIX, e vale principalmente pela ironia com que o autor define os caracteres e apresenta as situações. É um romance realista (e naturalista), onde não faltam o fatalismo, a análise social, as peripécias e a catástrofe próprios do enredo passional, e nele o autor faz uma crítica à situação decadente do país (a nível político e cultural) e à alta burguesia lisboeta oitocentista, por onde perpassa um humor (ora fino, ora satírico) que configura a derrota e o desengano de todas as personagens.

A história de Carlos da Maia e Maria Eduarda, além das nove apresentações em Lisboa, está prevista viajar pelo país, e o bailado terá uma apresentação também no Lódz Ballet Festival, na Polónia, no Dia Mundial da Dança, a 29 de abril de 2026, e em 30 de abril, no Teatro Wielki Lodzi.

E nada melhor para terminar esta simples crónica sobre o bailado “Os Maias”, do que recordar a prosa elegante e corrosiva de Eça, com que termina este seu livro.

“…Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo.... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.

Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.

- Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rotschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saia deste passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.

- Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva.

E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:

- Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas.

E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até aí esquecido em memórias do passado e síntese da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!

- Oh, diabo!... E eu que disse ao Vilaça e aos rapazes para estarem no Braganza pontualmente ás seis! Não aparecer por aí uma tipóia!...

- Espera! exclamou Ega. Lá vem um «Americano», ainda o apanhamos.

- Ainda o apanhamos!

Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:

- Que raiva ter esquecido o paiosinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma...

Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:

- Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder...

A lanterna vermelha do «Americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:

- Ainda o apanhamos!

De novo a lanterna deslizou, e fugiu. Então, para apanhar o «Americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.”