quarta-feira, outubro 29, 2025

Os painéis de Almada que incomodaram o regime salazarista

 

Os senhores do regime queriam as gares marítimas, de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, decoradas com painéis espetaculares que servissem de instrumentos de propaganda à sua ideologia fascista, mas foi Almada Negreiros que fez o seu espetáculo.

Com irreverência e sem cedências, retratou o Portugal triste dos anos quarenta do século passado, a Lisboa ribeirinha, com varinas de pés descalços, pescadores, marinheiros, saltimbancos que pedem esmola e também com o drama dos imigrantes que tinham de partir para fugir à miséria. No fundo eram as cenas reais da vida que ali acontecia mesmo, no cais da capital do então império.

A afronta ao regime foi tal que a sua destruição chegou a ser sugerida ao velho ditador, valendo a intervenção de António Ferro defendendo a qualidade inquestionável dos murais e também do arquiteto Porfírio Pardal Monteiro, autor dos projectos das duas gares marítimas.

E foi no passado dia 23 de outubro que o Atrium efectuou uma visita guiada aos painéis das duas gares, que se iniciou no Centro Interpretativo, situado no piso 0 da Gare Marítima de Alcântara, que conta com nove salas que nos conduzem numa viagem pela história do Porto de Lisboa, mostrando a importância da construção das Gares Marítimas e o processo criativo de Almada Negreiros na elaboração dos murais, na década de 1940.

Nas salas «Cais», «Passagens», «Partidas» e «Chegadas» é apresentada a história da construção das Gares de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, bem como a passagem de alguns acontecimentos históricos pelas mesmas, como a II Guerra Mundial (êxodo sem precedentes de gente em fuga da guerra da Europa, escapando aos regimes nazi e fascista da Alemanha e da Itália), a emigração, os embarques para a Guerra Colonial (foi daqui que partiram ao longo de 13 anos de guerra, 800 mil soldados com 500 mil africanos incorporados no exército português) e a subsequente descolonização e regresso dos portugueses das ex-colónias. As gares abriram pela primeira vez em 1943 e 1949, distam entre si cerca de 800 metros.

Os icónicos painéis de Almada mostram o eterno transgressor, e apesar da obra ter resultado de uma encomenda, tudo o que neles se vê é exclusivo do seu talento que ajustou o tom provocatório às narrativas que se propôs contar.

Escolheu a Nau Catrineta, lengalenga popular que falava das desventuras dos marinheiros numa travessia marítima para evocar os Descobrimentos, ilustrou o milagre de D. Fuas Roupinho salvo à beira do abismo, retratou o Portugal rústico e a Lisboa ribeirinha, com varinas de corpos robustos e pés descalços, pescadores e marinheiros em primeiro plano.

As pinturas, destinadas a receber ilustres viajantes estrangeiros no novíssimo cais de Lisboa, foram mal acolhidas pelo ministro Duarte Pacheco que terá mesmo classificá-las como “uns mamarrachos”. Obviamente, o país retratado com modernismo e realismo social a mais, não servia o figurino da política cultural então vigente.

Se na Gare de Alcântara ainda existia alguma ligação temática à História de Portugal, na Rocha do Conde de Óbidos a perspetiva foi colocada nos que sofrem, no drama dos que têm de partir para fugir à miséria, nos saltimbancos que pedem esmola.

A concluir, recorde-se que o restauro dos 14 murais das Gares foi finalizado recentemente, através de um financiamento garantido pela World Monuments Fund, uma organização sem fins lucrativos que tem como missão a salvaguarda de património cultural insubstituível em todo o mundo, com um programa bianual designado World Monuments Watch que a cada edição seleciona 25 lugares em diferentes geografias com notória relevância histórico-artística.

Foi uma visita enriquecedora que terminou num animado almoço no restaurante “O último porto”.













2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Muito bem...
não fui às 5a.fs não dá bjnho

29/10/25 19:17  
Anonymous Anónimo said...

É uma visita obrigatória. Muito bem sintetizada no texto do nosso amigo, José Carlos.

29/10/25 19:35  

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