Os painéis de Almada que incomodaram o regime salazarista
Os senhores do regime queriam as gares marítimas, de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, decoradas com painéis espetaculares que servissem de instrumentos de propaganda à sua ideologia fascista, mas foi Almada Negreiros que fez o seu espetáculo.
Com irreverência e sem cedências, retratou o Portugal triste dos anos quarenta do século passado, a Lisboa ribeirinha, com varinas de pés descalços, pescadores, marinheiros, saltimbancos que pedem esmola e também com o drama dos imigrantes que tinham de partir para fugir à miséria. No fundo eram as cenas reais da vida que ali acontecia mesmo, no cais da capital do então império.
A afronta ao regime foi tal que a sua
destruição chegou a ser sugerida ao velho ditador, valendo a intervenção de
António Ferro defendendo a qualidade inquestionável dos murais e também do arquiteto
Porfírio Pardal Monteiro, autor dos projectos das duas gares marítimas.
E foi no passado dia 23 de outubro
que o Atrium efectuou uma visita guiada aos painéis das duas gares, que se
iniciou no Centro Interpretativo, situado no piso 0 da Gare Marítima de
Alcântara, que conta com nove salas que nos conduzem numa viagem pela história
do Porto de Lisboa, mostrando a importância da construção das Gares Marítimas e
o processo criativo de Almada Negreiros na elaboração dos murais, na década de
1940.
Nas salas «Cais», «Passagens»,
«Partidas» e «Chegadas» é apresentada a história da construção das Gares de
Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, bem como a passagem de alguns
acontecimentos históricos pelas mesmas, como a II Guerra Mundial (êxodo sem
precedentes de gente em fuga da guerra da Europa, escapando aos regimes nazi e
fascista da Alemanha e da Itália), a emigração, os embarques para a Guerra
Colonial (foi daqui que partiram ao longo de 13 anos de guerra, 800 mil
soldados com 500 mil africanos incorporados no exército português) e a
subsequente descolonização e regresso dos portugueses das ex-colónias. As gares
abriram pela primeira vez em 1943 e 1949, distam entre si cerca de 800 metros.
Os icónicos painéis de Almada mostram
o eterno transgressor, e apesar da obra ter resultado de uma encomenda, tudo o
que neles se vê é exclusivo do seu talento que ajustou o tom provocatório às
narrativas que se propôs contar.
Escolheu a Nau Catrineta, lengalenga
popular que falava das desventuras dos marinheiros numa travessia marítima para
evocar os Descobrimentos, ilustrou o milagre de D. Fuas Roupinho salvo à beira
do abismo, retratou o Portugal rústico e a Lisboa ribeirinha, com varinas
de corpos robustos e pés descalços, pescadores e marinheiros em primeiro plano.
As pinturas, destinadas a receber
ilustres viajantes estrangeiros no novíssimo cais de Lisboa, foram mal
acolhidas pelo ministro Duarte Pacheco que terá mesmo classificá-las como “uns
mamarrachos”. Obviamente, o país retratado com modernismo e realismo social
a mais, não servia o figurino da política cultural então vigente.
Se na Gare de Alcântara ainda existia
alguma ligação temática à História de Portugal, na Rocha do Conde de Óbidos a perspetiva
foi colocada nos que sofrem, no drama dos que têm de partir para fugir à
miséria, nos saltimbancos que pedem esmola.
A concluir, recorde-se que o restauro
dos 14 murais das Gares foi finalizado recentemente, através de um
financiamento garantido pela World Monuments Fund, uma organização sem fins
lucrativos que tem como missão a salvaguarda de património cultural
insubstituível em todo o mundo, com um programa bianual designado World
Monuments Watch que a cada edição seleciona 25 lugares em diferentes geografias
com notória relevância histórico-artística.
Foi uma visita enriquecedora que terminou num animado almoço no restaurante “O último porto”.














2 Comments:
Muito bem...
não fui às 5a.fs não dá bjnho
É uma visita obrigatória. Muito bem sintetizada no texto do nosso amigo, José Carlos.
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