quarta-feira, janeiro 28, 2015

De como o Cante se sagrou Património Imaterial de Carnide

Naquela tarde de sábado, soalheira e fria, numa sala repleta da JF de Carnide, viveu-se o Alentejo, através da palavra, da imagem e sobretudo do seu Cante, que nos foi trazido pelos Ganhões de Castro Verde.
O dia começou à mesa do restaurante Galito, num almoço preenchido com a boa comida alentejana, que naturalmente conduziu a um animado convívio com os companheiros de Castro Verde, que foi inevitavelmente finalizado com o Cante entoado pelos Ganhões, logo acompanhados por todos os presentes.
A segunda parte desta iniciativa do Atrium, destinada a assinalar a consagração do Cante como Património Imaterial da Humanidade, decorreu nas instalações da Junta de Freguesia de Carnide.
Foi uma tarde única em que o Cante, esta expressão musical da cultura do Alentejo, juntou mais de uma centena de pessoas que, durante algumas horas, viveram e sentiram a força e a magia deste cantar colectivo (…um alentejano nunca canta sozinho, escreveu um dia Saramago), que nasceu da necessidade de aliviar o esforço do trabalho nos campos, dando ânimo para suportar a dureza da vida.
Ao final da tarde, nas tabernas e entre umas rodadas de tinto, criava-se o ambiente ideal para que as gargantas, cansadas da azáfama do dia, se libertassem nos versos das modas entoadas em uníssono. Era esta a vida do Cante.
Quanto à sua origem, os estudiosos apontam três hipóteses como as mais prováveis, embora não exista uma explicação definitiva, por insuficiência de informação histórica. Uma aponta a sua origem no canto gregoriano, outra explica a sua proveniência na herança da presença árabe no Sul de Portugal e uma terceira considera-o genuinamente português e alentejano, relacionado intimamente com o trabalho agrícola.
Durante a sessão houve a oportunidade de apreciar alguns filmes, sendo de destacar o documentário de Sérgio Tréfaut, que integrou a candidatura do Cante junto da UNESCO e também aquele que retrata o trabalho feito com os jovens nas escolas, pela sua importância na transmissão desta tradição musical às gerações mais novas, única forma de garantir o seu futuro.
Nos intervalos dos filmes e das modas cantadas pelos Ganhões de Castro Verde, registaram-se diversas intervenções da assistência e dos nossos convidados, nas quais foram abordadas algumas questões relativas ao Cante. Pela sua importância, referimos aquela que se prende com o papel da mulher nesta expressão artística.
Na sua origem, o Cante estando ligado às lides do campo, no qual homens e mulheres trabalhavam lado a lado, é uma prática mista. Com o fim da economia tradicional agrícola, ele passa do campo para as tabernas, e a mulher fica naturalmente mais afastada. É por isso que os primeiros grupos corais, que surgem a partir dos anos 30, são predominantemente masculinos.
Só na década de 70, mais acentuadamente depois de 1974, as mulheres voltam a ocupar o seu lugar no Cante, existindo já hoje diversos grupos corais femininos e mistos.
No final da sessão aconteceu o Cante na sua função de expressão musical colectiva e identitária. Num imenso coro, que juntou os nossos convidados, os alentejanos presentes e também os não alentejanos, cantaram-se as modas que são, muito justamente, património da humanidade, facto que hoje foi aqui assinalado.
À saída, nos nossos ouvidos, ainda ecoava a sentida declaração de amor, à bela ceifeira alentejana…

Ceifeira!
Ceifeira, linda ceifeira!
Eu hei-de,
Eu hei-de casar contigo!
Lá nos campos, secos campos,
Lá nos campos, secos campos.

À calma
À calma ceifando o trigo,
Pela força do calor!
Ceifeira!
Ceifeira, linda ceifeira
Ceifeira, linda ceifeira
Hás-de ser o meu amor!

Resta um agradecimento especial do Atrium, aos membros dos Ganhões de Castro Verde, ao vereador da Cultura da C.M. de Castro Verde, Paulo Nascimento e ao Miguel Rego, nosso amigo de longa data, pela disponibilidade e pelo empenho, que tornaram possível a realização desta interessante iniciativa.