O Atrium mergulhou nas terras do Ródão para um fim-de-semana luminoso
Gare de Santa Apolónia, oito horas e
dezasseis minutos da manhã do dia 3 de Outubro. O Intercidades com destino à
Covilhã, arranca vagarosamente da plataforma 5 levando no seu bojo um grupo de
20 estremunhados atriunistas e amigos, que irão iniciar uma aventura pelo
interior do território nacional.
Numa região onde a história se
escreveu na dureza do xisto milenar, o objectivo era o reencontro com a herança
dos primeiros povoadores que nos deixaram a maior concentração de gravuras
rupestres pré-históricas da Península Ibérica, ao longo de 40 quilómetros do
Vale do Tejo, com as lendas e os mitos nascidos dos cultos pagãos, com os
feitos militares vividos pelo velho Castelo de Wamba, com a memória dos templários,
que aqui se instalaram em 1189, com a visão mágica das escarpas vigorosas das
Portas de Ródão vigiadas pelo voo silencioso dos grifos.
Vila Velha de Ródão era o nosso
destino!
Um mau começo é quase sempre o
prenúncio de um fim feliz. E foi isso exactamente o que aconteceu aos 20
viajantes que desembarcaram na estação de Ródão e depararam com uma desoladora
visão. A anunciada Recepção, nem vê-la, o edifício da estação deserto. A cena
parecia retirada dos velhos westerns,
com os viajantes sentados pelos cantos, encostados às suas bagagens, nas
estações perdidas nas pradarias hollywoodescas, esperando não se sabe bem o quê
– a única visão positiva aqui, era a existência, nas imediações, de uma Casa
dos Amigos do Benfica, mas mesmo essa, tristemente encerrada…
Mas felizmente estamos em plena época
das telecomunicações, e os telemóveis dos nossos eficientes coordenadores
entraram em acção. Alguns telefonemas foram suficientes para se ter a
informação pretendida: O motorista que nos iria transportar até à estalagem
tinha sofrido um acidente. Agora era só aguardar que chegasse uma viatura de
substituição, o que aconteceu passado algum tempo.
Já instalados na Estalagem Portas de
Ródão, fomos recebidos pelo nosso anfitrião, o Nuno, que nos iria acompanhar
durante toda a nossa estadia. Desde logo se estabeleceu uma relação
descontraída e de saudável simpatia, extensível ao seu amigo Cristóvão que
também nos acompanhou nestes dois dias, cujo corolário foi uma pungente
despedida na estação de Ródão, que descreveremos mais adiante.
Após o café de boas-vindas, iniciámos
a nossa deambulação com uma caminhada a pé por Vila Velha de Ródão, com uma
passagem pela margem do rio Tejo, donde se avista a Capela da Senhora da
Alagada e se desfruta uma vista magnífica sobre as Portas de Ródão.
A nossa primeira paragem foi no Núcleo
Museológico do Lagar de Varas. A produção de azeite nas terras de Vila Velha de
Ródão remonta aos tempos antigos: Romanos, visigodos e árabes, povos que se
fixaram aqui em épocas distantes, já se dedicavam à produção deste preciosa matéria-prima
com múltiplos usos: óleo alimentar, fonte de luz, cosmético, lubrificante,
unguento, óleo sagrado, remédio…
(Os visigodos produziam e protegiam o azeite de tal modo que, nas suas
leis de proteção à agricultura, prescreviam multas para quem arrancasse uma
oliveira alheia).
Hoje
em dia o azeite desta região tem sido premiado com diversos galardões pela sua
qualidade, e continua a ter uma importância determinante na economia local.
Depois
de uma visita guiada, que nos mostrou as etapas da produção do azeite,
desde os métodos primitivos até aos sistemas mecânicos mais modernos, e das
habituais compras na loja do Núcleo, rumámos para a Estalagem, onde nos
deliciámos com um excelente almoço.
Depois
de um merecido descanso na esplanada, cujas vistas para o Tejo e para as Portas
de Ródão são um regalo para os nossos olhos, retomámos a visita, e o nosso
primeiro ponto de paragem foi o Espaço Museológico de Arqueologia de Vila Velha
de Ródão. Instalado nos antigos
Paços do Concelho, o Centro de Interpretação da Arte Rupestre do Vale do Tejo
(CIART) reúne informação sobre um dos mais importantes conjuntos de Arte
Rupestre pós-Paleolítica, constituído por mais de 20 mil gravuras ao longo de
40 quilómetros nas margens do rio Tejo.
A visão das obras de arte
dos nossos longínquos antepassados, que por aqui andaram, deixou-nos uma
sensação de sentida curiosidade e de algum encantamento por esta herança
excepcional.
Havia que aproveitar o
tempo, que se apresentou magnífico (mais uma vez os deuses estiveram com o
Atrium…), e assim rumámos de seguida para o conjunto o patrimonial composto pelo
Castelo de Ródão (também popularmente conhecido por Castelo do Rei Wamba por
associação ao último rei visigodo) e pela Capela de Nossa Senhora do Castelo,
conjunto este que foi objecto de obras de recuperação e classificado em 1990
como Imóvel de Interesse Público.
A torre-atalaia hoje existente, cuja
construção é atribuída aos Templários, integrada na Açafa, um território doado
por D. Sancho I à Ordem do Templo em 1199, é possivelmente o único vestígio que
resta do primitivo castelo construído no séc. VII pelos visigodos. Nos tempos
mais próximos, em particular nos séculos XVIII e XIX, ele viria a ser utilizado
como base de artilharia durante a Guerra dos Sete Anos (1756 e 1763) e na 1ª
Invasão Francesa (1807).
Situado numa cota de 315 metros, dele
se desfruta uma visão de grande beleza sobre o Rio Tejo e as fantásticas Portas de Ródão.
A cerca de 150 metros situa-se a
Capela, um templo rústico erguido em honra de Nossa Senhora do Castelo, edificada
nos séculos XVI/XVII, de arquitectura religiosa maneirista.
Com os olhos cheios desta paisagem
única, descemos até ao porto de Ródão, onde embarcámos para um passeio no Tejo,
num fim de tarde excelente, com as condições de luz e de temperatura ideais. A
passagem pelas Portas, com as escarpas a apertarem o Tejo num abraço vigoroso, os
grifos pairando no alto no seu voo gracioso, a brisa suave e as águas
tranquilas do rio, constituíram um momento único de prazer, de paz e de
reencontro com a natureza.
O dia iria terminar com um excelente
jantar no restaurante Vale Mourão, na Foz do Cobrão, mas antes, alguns
viajantes mais afoitos não perderam a oportunidade de um retemperador banho, na
piscina da Estalagem.
O Sábado amanheceu com um ligeiro
nevoeiro sobre o vale do Tejo, que lhe emprestava uma visão diferente e
esteticamente agradável. Após o pequeno-almoço tomado, dirigimo-nos até à
aldeia de xisto do Vale do Cobrão.
Esta aldeia situa-se
num local onde são ainda visíveis vestígios do oceano primitivo que já cobriu
estas terras, como por exemplo as rochas com cerca de 500 milhões de anos
marcadas pela ondulação e pelos fósseis marinhos. Possui uma arquitectura de
cariz popular, onde o quartzito e o xisto são os materiais dominantes, bem como
um conjunto de moinhos que acompanhavam o percurso da ribeira do Cobrão.
Existem também aqui locais de grande
importância histórica e arqueológica, como as conheiras, depósitos de calhaus
rolados nas margens do rio Ocreza, que marcam as antigas zonas de exploração aurífera,
efectuada desde a época dos romanos até ao período contemporâneo.
Visitámos o Centro de Interpretação
da Foz do Cobrão, bem como o Forno do Povo. Aqui tivemos a oportunidade de um
interessante convívio com duas habitantes da aldeia, que nos transmitiram as
suas vivências e recordaram as histórias ligadas à utilização deste forno
comunitário. Foi um momento de boa disposição que permitiu um contacto
enriquecedor para os viajantes, que vieram de Lisboa em “manada”, no dizer
acertado de uma das nossas interlocutoras…
De novo o regresso à Estalagem,
para o último almoço em terras da Açafa, e após um curto descanso, de novo em
movimento… O objectivo era a Casa das Artes e Cultura do Tejo, um polo
dinamizador das actividades artísticas do concelho.
Por azar, ou talvez não, a Casa
estava encerrado por motivos de uma programação que tinha ocupado todo o
fim-de-semana anterior. Mas como há males que vêm por bem, a visita às suas
instalações foi substituída por uma sessão de leitura de poesia, pela poetisa
Ilda Ribeiro, que por motivo da sua amizade com a Guida Boavida, se tinha
associado ao grupo e simpaticamente se tinha disponibilizado a ler alguns dos
versos do seu livro “Crónicas da minha infância: os sentidos da memória”, uma
interessante publicação, ilustrada com gravuras do Mestre Cargaleiro.
Então, ao ar livre de uma tarde
luminosa, no anfiteatro da Casa das Artes, aconteceu poesia. O acaso (ou talvez
não… era o tal prenúncio do fim feliz que preconizámos no início desta crónica)
proporcionou-nos um final à altura desta excelente escapadela.
O fim da festa aproximava-se. Já na
Estalagem, depois das malas arrumadas, ainda houve tempo para um lanche de
despedida e para uns momentos de descontraído convívio com os nossos
anfitriões, o Nuno e o Cristóvão, que nestes dois dias mostraram uma
disponibilidade total para tornar a nossa estadia irrepreensível.
Aliás, a cena comovente da
despedida na estação de Ródão, com os lenços a acenar, lágrimas a correr
copiosamente e até com algumas manifestações mais ruidosas, dignas de
competentes carpideiras, é bem o testemunho das relações de amizade que se estabeleceram
entre nós.
(Só não compreendemos bem a
disfarçada alegria dos nossos anfitriões, quando no placard da estação apareceu
o anúncio de que o intercidades estava a chegar à tabela… será que? Não! Vamos
pensar que apenas desejavam o nosso regresso tranquilo, e a horas, ao conforto
dos nossos lares…).
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