Irlanda 2014 - (4) O Atrium à descoberta da Ilha Esmeralda
Parte IV – Um final grandioso na Calçada do Gigante, com um epílogo no
Crown Liquor Saloon de Belfast.
A saída pela manhã cedo, neste
penúltimo dia de viagem, ofereceu-nos uma bonita visão de Derry, reflectindo-se
nas águas tranquilas do rio Foyle. Ao ver esta imagem da cidade, que transmite
tanta paz e serenidade, não pudemos deixar de pensar, por contraste, na
violência e no sofrimento que, até há bem pouco tempo, aqui estavam instalados
no quotidiano dos seus habitantes.
Os 65
quilómetros que nos separavam da Calçada do Gigante (Giant’s Causeway) foram
vencidos sem dificuldade. O fresco da manhã e a luminosidade da paisagem
ajudaram a superar algum cansaço físico porventura existente.
Chegados à
Calçada, e antes de começarmos a caminhada desde o Centro de Visitantes,
queremos fazer uma declaração de princípios, sobre o que acreditamos ser a sua
verdadeira origem: As mais de 40.000 colunas de basalto que constituem esta
extraordinária escadaria, que se estende suavemente para as águas do Canal do
Norte, são tão perfeitas que as explicações científicas (da lava liquefeita, do
arrefecimento rápido, das fissuras criadas por esse arrefecimento, das novas
erupções vulcânicas, da erosão pela neve, etc., etc., tudo isto num espaço de
mais de 60 milhões de anos), afiguram-se muito mais irreais, e muito menos
credíveis, do que a antiga lenda que atribui a sua construção ao gigante Finn
MacCool (o já nosso conhecido chefe dos Fianna… ver a Parte I desta crónica). O
seu objectivo ao construir a Calçada, era o de ir ao encontro da sua amada, que
vivia na ilha de Staffa, na Escócia. Esta lenda, além de muito mais poética,
parece muito mais verosímil. E quando sabemos que na Escócia, no local de
destino do nosso apaixonado gigante, existe um conjunto de colunas idênticas a
estas, então as dúvidas que pudessem existir, dissipam-se por completo… Aliás,
não é por acaso que se chama a “Calçada do Gigante”, e não a “Calçada dos Vulcões”…
É de facto um
lugar único. Olhamos em redor e são colunas e mais colunas, umas maiores outras
mais pequenas, umas mais escuras outras mais claras, subimos e descemos
degraus. E todos tão geometricamente hexagonais! Os dedos num frenesim castigam
os obturadores das máquinas fotográficas. A paisagem tem qualquer coisa de
irreal, de tal modo que não demos pelo tempo passar, e lá chegou a hora de
regressar. Apanhámos o minibus (1
Libra, que aqui o euro ainda não chegou), na direcção do Centro de Visitantes,
o caminho era a subir e o cansaço já começava a pesar.
Feitas
algumas compras voltámos ao Pinto Lopes’s bus, para percorrer os 96 quilómetros
de caminho até à capital da irlanda do Norte, a cidade de Belfast.
Ali chegados,
fizemos um percurso de autocarro pela zona das docas, conhecida por “Docks and
Titanic Quarter”, situada na margem direita do rio Lagan. Entre outros
equipamentos portuários, podemos ver o edifício do museu dedicado ao naufrágio
do Titanic, que ocorreu em Abril de 1912. É um edifício com uma arquitectura
arrojada, que procura reproduzir a grandiosidade do malogrado navio. As instalações
onde o Titanic foi projectado, e os pórticos, pintados de amarelo com as
iniciais “H & W” (que correspondem aos estaleiros Harland and Wolff, onde
ele foi construído), estão cuidadosamente preservados neste local.
Abrimos aqui
um parêntesis para fazer uma referência ao aproveitamento exagerado, com
intuitos meramente comerciais, de um acontecimento trágico, no qual perderam a
vida mais de 1.500 pessoas (vê-se a “marca” Titanic por todo o lado: cafés,
lojas, os “Titanic tours”, a “Titanic Exhibiti”, as bugigangas de toda a
espécie que se vendem nas lojas de “souvenirs” para turistas, etc. etc.). Uma
coisa é assinalar num memorial ou num museu o acontecimento, homenageando ao
mesmo tempo a memória das vítimas, outra coisa é a sua desmedida utilização comercial,
com fins exclusivamente lucrativos. Apetece perguntar se pagam os devidos
royalties às famílias dos mortos que, de certo modo, alimentam esta estranha
forma de obter receitas à custa de uma tragédia. Fica o desabafo de alguém,
para quem não vale tudo para fazer dinheiro…
Mas voltemos
à cidade. Belfast, também é conhecida por “Old Smoke” pelo facto de, enquanto o
resto da irlanda permanecia rural e agrícola, ela ter sido a primeira cidade
industrial da era vitoriana, a sofrer o impacto da Revolução Industrial. Os
estaleiros, cordoarias, tecelagens e fábricas de tabaco, trouxeram uma tal
prosperidade à cidade, que no final da I Guerra Mundial, já tinha uma população
de cerca de 400.000 habitantes (hoje tem perto de 600.000).
No nosso
trajecto, ainda na zona portuária, pudemos observar os diversos murais
provenientes das duas comunidades, católicos e protestantes, pintados nas
paredes de prédios e nos muros. A partir de 1968, data em que eclodiram aqui
violentos conflitos, conhecidos
eufemisticamente por “the Troubles”, a arte the pintar murais
tornou-se uma das mais populares formas de expressão. Nas áreas
protestantes, eles representam a lealdade à Coroa Britânica enquanto nas áreas
católicas apresentam a vontade de se libertarem do jugo britânico e de se
juntarem à República da Irlanda, assim como divulgam o folclore tradicional e a
língua irlandesa. Nalgumas ruas, os marcos foram pintados de vermelho, branco e
azul, as cores da Grã-Bretanha, noutras de verde, branco e laranja, as da
República da Irlanda.
Hoje, embora
todos os problemas não estejam ainda totalmente resolvidos, estes murais, com
toda a carga violenta que encerram, podem ser vistos como marcas de um período
histórico muito difícil, que parece ter sido ultrapassado nas suas formas mais
radicais.
A paragem
seguinte foi no hotel Park Inn, onde ficamos alojados, um simpático e bem
situado hotel. Após um breve descanso o almoço foi aqui servido.
Da parte da
tarde houve tempo para um percurso a pé pela cidade, procurando sentir o seu
respirar e conhecer os locais de maior interesse. Começámos pela City Hall, a
Câmara Municipal, um imponente edifício em pedra rodeado por um jardim onde
existe um memorial aos náufragos do Titanic e um obelisco em memória aos heróis irlandeses
das duas guerras mundiais. Devido à onda de calor que nestes dias assolou
a Irlanda, o relvado do jardim mais parecia a praia da Costa da Caparica ao
domingo. Tudo a tomar banho de sol, de tronco nu e bronzeador a preceito, que
dias como este por aqui são raros...
Seguimos depois
até à St. Anne’s Cathedral, uma catedral protestante com uma fachada
neo-romântica, cuja construção foi concluída em 1904, e que possui uma bonita
colecção de vitrais.
Da catedral partimos em busca do
WaterFront Hall, que é uma espécie de doca em frente ao rio Lagan. É lá que
fica uma das estátuas mais bonitas da cidade. Sobre um globo, feito de
bronze, uma figura feminina, desenhada com tubos de aço, segura um anel. Ela
simboliza a paz na Irlanda do Norte e, particularmente, em Belfast. A escultura
chamada “Beacon of Hope” (Farol de Esperança) foi feita em 2007 por Andy Scott.
Quase ao lado
desse monumento, está o “Big Fish”, uma estátua de cerâmica, feita em 1999,
para assinalar a recuperação do rio Lagan. O grande peixe é formado por pedaços
de cerâmica, decorados com textos e imagens que contam a história de Belfast.
A garganta já
estava seca, e a procura por uma esplanada onde se pudesse beber uma Guiness
foi infrutífera, pois aqui em Belfast há restrições à bebida de álcool em
público, em certas zonas da cidade. Então um grupo mais sedento arrostou com a
caminhada até ao bar do nosso hotel, por sinal um bar bem simpático, e aí
afogou a sua sede numas “pints”, não da Guiness mas da “Belfast Black”, uma
cerveja preta fabricada aqui, mais ligeira e com um sabor a malte menos
acentuado.
Antes do
jantar, ainda houve tempo, e forças, para mais um giro, desta vez passando pelo
George’s Market (uma das mais antigas atracções de Belfast, construído em 1890
e considerado um dos melhores mercados do Reino Unido), e pela “Grand Opera
House” (um magnífico edifício vitoriano construído em 1895, da autoria do
arquitecto Frank Matcham).
Depois do
repasto, o último em terras irlandesas, houve um convívio de despedida,
oferecido pela nossa guia Marisa Rebelo, em nome da Pinto Lopes Viagens, no
Crown Liquor Saloon, um verdadeiro templo vitoriano da bebida. Construído em
1826 tem uma bela fachada de azulejos policromados e no interior uma exuberante
decoração com estuques, madeiras, vitrais, mármores, mosaicos, antigas lâmpadas
de gás, e um esplêndido tecto esculpidos em gesso.
Foi um local
perfeito para beber um Jameson e encerrar esta nossa viagem à Ilha Esmeralda,
esta Irlanda que, nos versos de um poema popular, “é tão verde, como o
cabelo das sereias ao amanhecer…”. Amanhã é a ligação para Dublin e o voo da
Air Lingus para a nossa boa e velha Lisboa.
O dia derradeiro amanheceu claro, e a
alvorada foi cedo, pois o voo estava marcado para as 11h45m. Meio ensonados,
percorremos a bordo do Pinto Lopes’s bus, os cerca de 170 quilómetros que nos
separavam do Aeroporto de Dublin. Aqui, feitas as habituais operações de
embarque, e após as despedidas da Marisa, lá nos instalámos no airbus da Air
Lingus.
Arrumadas as bagagens e sentados os
passageiros, o avião começou lentamente a deslocar-se, quando algo de estranho
numa varanda da gare, nos chamou a atenção. Era um grupo indistinto de pessoas
que se despediam, acenando para o nosso avião. Ao fixá-las melhor, através da
janela do airbus, não conseguimos evitar uma exclamação de surpresa e ao mesmo
tempo de alegria.
Quem estava ali a despedir-se dos lusos
viajantes, eram todas as personagens ilustres desta Irlanda Esmeralda, de quem
ficámos amigos: Lá estava o Óscar Wilde acenando com o “O Retrato de
Dorian Gray” na sua mão esquerda, o Samuel
Beckett esperando pelo Godot, o Bernard Shaw com a sua inconfundível barba
branca, empunhando uma bobina do seu Pigmalião, o Jonathan Swift trazendo às
cavalitas o pequeno Gulliver, o James Joyce e os seus característicos óculos
redondos, rodeado de gente de Dublin, o W. B. Yeats com o seu ar místico e melancólico,
acenando com umas folhas de papel amarrotadas, onde tinha escrito alguns dos
seus belos poemas e o bom gigante Finn MacCool, acompanhado pelos seus
terríveis guerreiros Fianna, destacando-se pela sua imponente figura e pela
exuberância das suas saudações. Lá estavam também os duendos, os leprechauns e
também o Daniel O’Connell e o Michael Collins. Um pouco afastado, com a
imprescindível “pint” na mão, e as algibeiras atulhadas de notas, o senhor
Arthur Guiness, mais atrás, um jovem de ar pouco recomendável, exibia
triunfante uma carteira de cabedal castanha… (o que pretenderia ele dizer?).
Enfim, foi uma despedida inesperada e
comovente, que nos deixou a certeza de que, mais tarde ou mais cedo, voltaremos
a esta bela terra (o único país cujo brasão de armas é um instrumento
musical, a Harpa), onde deixámos bons
amigos. Não era um adeus, era um até breve!
Alguns minutos depois o airbus acelerou pela
pista, elevou-se suavemente no céu irlandês e voou rumo ao Sul. O nosso caminho
era a rota de Lisboa.
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