segunda-feira, agosto 25, 2014

Irlanda 2014 - (3) O Atrium à descoberta da Ilha Esmeralda


Parte III – Da beleza exuberante da Abadia de Kylemore até aos murais evocativos do “Bloody Sunday”, em Derry.
O amanhecer deste 5º dia de viagem, mais uma vez com o céu azul, veio confirmar a protecção dos leprechauns sobre a nossa caravana. Hoje vamos entrar nas terras selvagens de Connemara, no Oeste da Irlanda. É uma zona essencialmente agrícola, com pequenas povoações, suaves montanhas forradas por uma vegetação rasteira, campos férteis, tranquilos lagos e extensas turfeiras. É a Irlanda na sua forma mais bela e mais próxima da imagem que todos construímos, a partir das leitura e das imagens dos filmes.
E foi exactamente à beira de uma dessas turfeiras que fizemos a nossa primeira paragem. As turfeiras, que ocupam cerca de 15% do território irlandês, são formadas pela decomposição parcial de matéria orgânica, como folhas, raízes e outros restos de plantas, que ao longo de milhares de anos e sob condições geológicas adequadas, se transformam em turfa, sendo esta utilizada desde há séculos como combustível para aquecimento doméstico, e também como fertilizante.
Caminharmos sobre aquele solo mole e elástico, e tocarmos naquela matéria escura existente em camadas superficiais, é uma sensação estranha talvez por sabermos que estamos perante uma substância vegetal, com mais de 10.000 anos de existência e que constituiu durante muito tempo, a principal fonte de energia da Irlanda.
Actualmente, a redução significativa da área das turfeiras, levou a que estas fossem classificadas como Área Especial de Conservação, e a extracção da turfa considerada ilegal. Esta medida, que visa preservar um habitat único no mundo, tem levantado alguma oposição por parte dos agricultores locais, que defendem o direito à extração de turfa.
Sem esquecer estes problemas reais, que são complexos, fomos captados pela paisagem envolvente, de uma beleza selvagem, salpicada pelo colorido de umas quantas ovelhas “irish black face”, que pastavam tranquilamente nas verdes margens da baía, pintalgadas com as cores dos seus proprietários.
Vivida esta nova experiência turfeira, voltámos ao Pinto Lopes’s bus e retomámos a estrada que nos iria conduzir a um local especial, a Kylemore Abbey. Aqui chegados, tudo parece perfeito, o lago Pollacappul de águas tranquilas, o verde que desliza da montanha para abraçar as margens do lago, a abadia neogótica colocado no centro do cenário… mas a beleza deste local tem algo de transcendente, que vai para além do que os nossos olhos captam, porque a história da Kylemore Abbey é uma história de amor. Do amor de um homem, Mitchell Henry, por uma mulher, Margaret Vaughan.
Recuemos a 1850, Mitchell e Margaret, na sua lua-de-mel, visitam Connemara e Margaret fica apaixonada por este local, na altura um couto de caça. Então Mitchell compra os 6.000 hectares da propriedade, como prenda para a sua amada, e inicia a construção do magnífico castelo, que fica concluído em 1867, ao mesmo tempo que procede ao arranjo de toda a zona pantanosa, transformando-a em jardim e numa quinta de produção agrícola. Mas as histórias de amor nem sempre têm um fim feliz, e passados sete anos, Margaret morre repentinamente, vítima de disenteria. Tinha 45 anos.
Mitchell manda construir em memória de Margaret, nos terrenos de Kylemore, uma igreja gótica e um mausoléu, onde deposita o corpo de sua mulher, e para onde as suas cinzas irão ser levadas após a sua morte, em 1910.
Mitchell Henry foi um homem singular. Nascido em Inglaterra, em Manchester, cedo adoptou a Irlanda como a sua terra. Foi com a morte de seu pai, um abastado comerciante de algodão, que herdou a fortuna que lhe permitiu adquirir os terrenos em Kylemore e construir o castelo, abandonando a sua carreira de médico-cirurgião, dedicando-se ao trabalho na quinta.
Aqui ensaiou algumas ideias revolucionárias para a época, ajudando muito o desenvolvimento da região. Criou uma quinta modelo, e um jardim vitoriano, o mais extenso do país. Utilizou a canalização da água para rega e para a protecção das plantas no inverno, criou um sistema hidroeléctrico, aproveitando a energia da água vinda da montanha (o castelo deixou de ser iluminado por gás, velas e azeite) e projectou as estradas públicas que passavam perto dos seus terrenos. Fundou uma escola em Kylemore, para todos os filhos dos seus trabalhadores, foi o representante de Galway na Câmara dos Comuns, durante 14 anos e foi membro do Home Rule Party, movimento que defendia a autonomia para a Irlanda.
Hoje em dia o palácio abriga um colégio feminino, dirigido por uma comunidade de freiras beneditinas, que aqui se instalou durante a Primeira Guerra Mundial, fugidas da cidade de Ypres, na Flandres belga, onde o seu convento foi destruído pelos bombardeamentos alemães.
E, após uma caminhada pelos trilhos que se estendem ao longo do lago, e dos quais se desfrutam magníficas vistas, foi já com alguma pena que regressámos ao Pinto Lopes’s bus, com um sentimento de admiração pela história de amor e de vida de Margaret e de Mitchell, agora juntos para sempre, na terra que elegeram como sua… Um copo de Jameson vinha agora mesmo a calhar para afogar esta melancolia que nos assaltou neste lugar de excepção!
A paragem seguinte foi o restaurante, na zona de Leenane, à beira de uma extensa baía, para o repasto que nos iria dar forças para a segunda parte do dia.
Já mais aconchegados, lançámo-nos na estrada para o percurso que nos iria levar até à Irlanda do Norte, mais precisamente até à cidade de Derry (Londonderry para os anglófilos).
No caminho, passámos por bonitas localidades (Westport, Castlebar, Charlestown), nas quais o arranjo das ruas e fachadas, profusamente enfeitadas com cuidadas floreiras, era um constante regalo para os nossos olhos.
A última paragem na República da Irlanda efectuou-se na cidade de Sligo, e quis o acaso – ou talvez tivessem sido os nossos deuses protectores a guiar-nos os passos? – que a nossa despedida se fizesse num local simbólico da República da Irlanda. De facto Sligo é considerada como a capital artística do Noroeste irlandês, e está intimamente ligada a W.B. Yeats (1865 – 1939), considerado o mais ilustre poeta irlandês, prémio Nobel da Literatura em 1923, cujo legado artístico contribuiu para o desenvolvimento de uma nova identidade cultural na Ilha Esmeralda.
A estátua de bronze do poeta, com alguns dos seus versos nela inscritos, está situada junto ao Yeats Memorial Building, onde se realizam exposições e onde são ministrados cursos de verão sobre a vida e a obra do poeta. A cidade está localizada junto ao estuário do rio Garavogue e ganhou importância, como ponto de passagem entre o Ulster e Connaught, sob o domínio dos Normandos. 
Na despedida de Sligo, recordamos o epitáfio que Yeats redigiu para a lápide do seu túmulo, aqui existente: “Lança um olhar frio sobre a vida, sobre a morte. Cavaleiro, segue o teu caminho”.
E assim fizemos. Desta vez a próxima paragem seria já na parte norte da ilha, na cidade de Derry.
Uma primeira impressão, que seria confirmada nos dias que se seguiram, é a de que os tempos parecem mesmo estar a mudar por aqui, e para melhor. A fronteira entre as duas Irlandas não existe. Nenhuma placa informativa, e posto aduaneiro, nem vê-lo! O único sinal de que já nos encontrávamos na Irlanda do Norte, foi o aparecimento da bandeira britânica (a Union Flag), juntamente com a da Irlanda do Norte, em numerosos mastros. Como vai longe o tempo das barreiras de arame farpado e dos soldados armados até aos dentes, que nos habituámos a ver na comunicação social.    
Chegados a Derry, fomos directamente ao Memorial que evoca o “Bloody Sunday”, que fica situado na chamada “Free Derry”, a zona de bairros maioritariamente habitados por católicos.
Pela importância que teve no desenrolar da luta pela autonomia da Irlanda do Norte, face à Grã-Bretanha, e pela gravidade dos factos ocorridos naquele domingo, dia 30 de Janeiro de 1972, façamos uma breve resenha histórica.
A luta da Irlanda pela sua autonomia e independência é um longo processo, cujo início se pode encontrar em finais do século XVIII, com a rebelião dos United Irishmen, derrotada em 1798. Daí para cá houve vários episódios de revoltas, alimentados pela desigualdade de tratamento entre os protestantes, a classe dominante, e os católicos, limitados nos seus direitos. Em 1916 eclodiu em Dublin, na Estação Central dos Correios, a chamada Revolta da Páscoa, reprimida com tal brutalidade (os seus 14 dirigentes foram todos julgados em tribunal marcial e executados. James Connolly, que ficara gravemente ferido, foi atado a uma cadeira para ser fuzilado), que conseguiu mobilizar a opinião pública e atrair muitos apoios para a causa irlandesa.
Em 1919 foi fundado o Exército de Libertação Irlandês (IRA), e em 1922 é proclamado o Estado Livre da Irlanda. Nos anos 50, 60 e 70, o IRA, reactivado por católicos republicanos da Irlanda do Norte, desencadeia uma campanha de acções violentas, contra as autoridades e os militares britânicos. Em 1967 é criada a Associação dos Direitos Civis da Irlanda do Norte, para combater a discriminação, então existente, contra os católicos.
É neste contexto que surgem os acontecimentos do “Bloody Sunday”. Aquela Associação dos Direitos Civis convoca uma marcha pacífica na direcção do Guildhall, em protesto contra as prisões arbitrárias e as torturas. Era um domingo soalheiro, dia 30 de Janeiro de 1972, e cerca de 15.000 de pessoas participaram no protesto.
A polícia britânica, que tinha proibido as manifestações, monta barricadas no percurso. Os organizadores da marcha, para evitar confrontos violentos, alteram o percurso, mas um pequeno grupo, cerca de 30 manifestantes, composto sobretudo por jovens, resolve não acatar e avança para as barricadas. Dão-se inicialmente incidentes com troca de pedradas, gases lacrimogéneos e balas de borracha, o habitual nestas situações, quando subitamente o 1º Batalhão do Regimento de Paraquedistas do exército Inglês, destacado em Derry, irrompeu disparando balas reais, matando 13 pessoas (todas desarmadas e cinco alvejadas pelas costas), e ferindo 16.
Dada a gravidade do ocorrido, vários inquéritos foram feitos ao longo dos anos, o último dos quais, realizado por juízes independentes e conhecido por Inquérito Saville, foi iniciado em 1998 e apresentou o relatório final em 2010. Nesse relatório concluía-se que “os homicídios de civis por parte dos soldados britânicos foram ilegais”. As conclusões do relatório, levaram a que o Primeiro-ministro do Reino Unido, David Camerom, apresentasse publicamente um pedido de desculpas às famílias das vítimas.
Da nossa parte, como uma modesta homenagem aos que perderam a vida nesse “Bloody Sunday”, e para que a memória se não apague, relembremos os seus nomes e idades:
John Duddy (17 anos); Patrick Joseph Doherty (31 anos); Bernard McGuigan (41 anos); Hugh Gilmour Pio (17 anos); Kevin McElhinney (17 anos); Michael G. Kelly (17 anos); John Pius Casal (17 anos); William Noel Nash (19 anos); Michael M. McDaid (20 anos); James Joseph Wray (22 anos); Gerald Donaghy (17 anos); Gerald (James) McKinney (34 anos); William A. McKinney (27 anos).
Voltando à actualidade, bem mais encorajadora, onde a violência parece ter sido posta de parte na resolução do problema irlandês (relembremos que o IRA em 2005 renunciou à luta armada), depois de apreciarmos os murais pintados nalguns prédios da “Free Derry”, rumámos ao nosso hotel, bem situado junto da principal praça de Derry, o Diamond, e após um breve repouso nos quartos descemos para o jantar. Foi um jantar especialmente animado e barulhento, dada a presença de um numeroso grupo de turistas espanhóis, que nos vieram demonstrar que afinal nós, os portugueses, somos muito bem comportados…
Depois do repasto, ainda com uma bonita claridade, aqui anoitece mais tarde do que na nossa Lusitânia, um grupo de resistentes foi fazer um passeio pedonal, para captar melhor o ambiente da cidade.
Derry, cujo nome deriva do gaélico “Doire” que significa Bosque de Carvalhos, é a única cidade da Irlanda, com o centro completamente rodeado por muralhas. Estas muralhas, que se erguem a uma altura de 8 metros, foram concluídas em 1618 e defendiam a cidade mercantil dos ataques dos clãs gaélicos de Donegal.
Foi sobre essas muralhas que fizemos um percurso completo à volta da cidade. As vistas são muito interessantes e a luz do final do dia emprestou uma beleza especial ao ambiente, convidando os fotógrafos a porem à prova as suas capacidades.

Uma chamada de atenção especial para dois edifícios: O Guildhall, construído em 1890 em estilo gótico, a sede das corporações da cidade, e a Catedral de St. Columb, construída entre 1628 e 1633, a primeira catedral a ser fundada nas Ilhas Britânicas após a Reforma. Já no regresso ao hotel, antes de recolher ao quarto, demos ainda uma saltada ao Diamond, para apreciar o monumento aos mortos da Primeira Guerra Mundial, ali existente, inaugurado em 1927. As comemorações do centenário do início do conflito despertaram-nos o interesse para conhecer este monumento.