Um fim-de-semana perfeito, descobrindo o Turismo Industrial de S. João da Madeira e mergulhando nos azulejos de Ovar, a sua cidade-museu
Quando no sábado de manhã arrancámos da
Av. do Colégio Militar, em Carnide, um manto de escuridão ainda cobria uma
Lisboa adormecida. Pudera, o relógio tinha acabado de bater as 7 horas da
madrugada…
A viagem até S. João da Madeira decorreu
sem nada de importante a assinalar, e pelas 11 horas estávamos a desembarcar do
autocarro da Barraqueiro, no parque de estacionamento em frente da Torre da
Oliva, um ex-libris da cidade de S. João da Madeira.
Este edifício emblemático, que hoje é o
centro de um inovador projecto de turismo industrial, foi nos anos 50 e 60 do
século passado, a referência para os milhares de operários que diariamente se
dirigiam para os seus postos de trabalho, no complexo industrial da Oliva,
fundado pelo industrial António de Oliveira.
Decorria o ano de 1948 e a inauguração
da fábrica das famosas máquinas de costura (quem não teve uma na sua casa… ou
em casa dos seus pais), marcava o início de um período de crescimento notável
da Oliva, tendo-se construído então os edifícios modernistas da época, dos
quais se destacava esta Torre, que no alto, sobre um relógio, exibia orgulhosamente
a palavra OLIVA.
E agora, quase 70 anos depois, aqui
chegámos, não para iniciar o nosso turno de laboração na fábrica, mas para realizar
uma visita de descoberta de um património que nos surpreendeu pela sua
qualidade e riqueza histórica.
As boas vindas foram dadas no edifício
do Welcome Center, onde se procedeu também à distribuição de elegantes batas
brancas a todos os visitantes, que emprestaram um ar distinto ao grupo. O
Atrium ficou literalmente de ponto em branco…
E assim aprimorados lá fomos para a
nossa primeira visita, o Museu da Chapelaria. Este museu inaugurado em Junho de
2005 transportou-nos para o mundo da Chapelaria, nas suas diversas áreas, desde
a produção, comercialização, hábitos sociais e impacto económico, constituindo
uma referência na história de uma indústria que marcou profundamente a vida e a
história deste concelho.
Foi uma visita muito interessante,
guiada de forma exemplar e dinâmica que nos permitiu um contacto directo com as
diversas fases da fabricação dos chapéus, desde a produção da matéria-prima até
ao acabamento final do produto.
Já no fim fomos presenteados com um
extra, a exposição temporária intitulada “Por favor, não coma os chapéus” da autoria de Maor
Zabar, um designer de chapéus israelita
cujas peças se destacam pela originalidade. Pássaros, insectos, plantas
carnívoras, contos tradicionais, comida e criaturas marinhas são algumas das temáticas
das suas colecções que emprestam uma faceta realista à qual não falta uma
pincelada de humor.
E foi com manifesta boa disposição,
causada pelas obras de Maor Zabar, que rumámos à Fábrica dos Sentidos, o
restaurante localizado no edifício do Museu da Chapelaria, onde nos deliciámos
com um excelente almoço de comida tradicional portuguesa.
Já com os estômagos bem aconchegados
dirigimo-nos ao ponto seguinte da visita, o Núcleo de Arte da Oliva.
Situado na chamada Zona 2 da antiga
empresa metalúrgica, este núcleo possui um amplo espaço destinado ao
acolhimento de indústrias criativas e culturais e também a um Centro de Arte Contemporânea.
Ao sair do restaurante, por um feliz
acaso, o nosso grupo passou a contar com a companhia do Presidente da Câmara
Municipal de S. João da Madeira, Jorge Sequeira, antigo colega e amigo da nossa
companheira Fernanda Moniz.
Este Centro de Arte Contemporânea,
criado em 2013 no âmbito do projecto de reconversão da fábrica e fundição da
Oliva, conta com uma valiosa colecção de arte doada por um casal de S. João da
Madeira, Norlinda e José Lima, que é uma das maiores coleções de arte contemporânea
privadas de Portugal e que inclui, entre muitas
outras, obras de Andy Warhol, Paula Rego, Álvaro Lapa, Vieira da Silva, Graça
Morais e Júlio Resende.
No início da visita, que foi
superiormente guiada pelo artista plástico portuense José Rosinhas, tivemos a
agradável surpresa de contar com a presença do próprio colecionador José Lima,
que ao ter conhecimento da nossa presença, fez questão de, num gesto de extrema
simpatia, vir dar as boas-vindas ao grupo.
Para além da mostra do casal Norlinda e
José Lima, uma referência à exposição “In and Out of Africa”, que apresenta
mais de 90 obras de arte, pinturas, desenhos, esculturas, cerâmicas e
instalações de mais de 50 artistas, selecionadas de acordo com as antigas rotas
atlânticas de escravos. O seu objetivo é demonstrar ricas formas de expressão
de artistas de Arte Bruta africanos, afro-americanos, haitianos, brasileiros e
cubanos e recordar que o continente africano foi outrora o berço da
Civilização.
Foi uma interessante e enriquecedora
visita pelos vários núcleos temáticos em que se agrupam as obras em exposição.
Por sugestão do Presidente Jorge
Sequeira, ainda nos foi dada a possibilidade de visitar as instalações onde se
situavam os fornos para a cozedura das banheiras Oliva.
Dirigimo-nos de seguida para o último
ponto da nossa visita, o Museu do Calçado que pretende dar a conhecer a
história da produção do calçado, desde a oficina até à grande fábrica, a
evolução do sapato ao longo do tempo, mostrando também o lado afectivo de
sapatos verdadeiros, doados por dezenas de figuras públicas e destacando, ao
mesmo tempo, o seu potencial enquanto objecto de arte.
Foi uma visita guiada que se iniciou
junto aos sapatos de cristal da Cinderela e que percorreu as cinco áreas em que
o museu está dividido: o fabrico tradicional; a produção industrial; a evolução
de calçado no tempo, desde a pré-história ao final do século XX; os sapatos
produzidos pelos designers de todo o mundo e as histórias de sapatos de
notáveis; e por fim as obras de artistas que tiveram no sapato a sua
inspiração.
No decurso da visita, pudemos apreciar a
exposição temporária “Os assombrosos sapatos de Kobi Levi”, um original
designer de calçado israelita que aqui expõe as suas irreverentes criações,
concretizadas em mais de cinco dezenas de sapatos.
O nosso dia em S. João da Madeira tinha
chegado ao fim, e foi com um sentimento satisfação pelo que vimos, e pelo modo
acolhedor como fomos recebidos, que nos despedimos, com o desejo de aqui voltar
para poder conhecer as fábricas que estão em laboração, de calçado e de chapelaria,
sem esquecer a lendária Viarco, cujos lápis foram fiéis companheiros na nossa
adolescência.
Percorridos os cerca de 15 quilómetros
que nos separavam de Ovar, chegámos ao nosso destino, o Hotel Meia-Lua, e
depois de um curto descanso deambulámos pelas ruas quase desertas, em busca de
um local para uma refeição ligeira, já que ao almoço nos “banqueteámos como
abades”...para utilizar uma eloquente e adequada expressão queirosiana…
Depois de uma noite retemperadora, o dia
soalheiro convidava a uma jornada luminosa pela Cidade Museu do Azulejo, um
verdadeiro museu a céu aberto, com os pedaços de cerâmica colorida a decorar as
fachadas das casas, das igrejas, dos monumentos e até em tapetes estendidos
pelos passeios (aqui um pequeno parêntesis para lembrar a origem da palavra
azulejo, que deriva do termo árabe “Al
zulej”, que significa pequena pedra lisa e polida).
Foi uma visita guiada pela “Rua do
Azulejo”, um projecto criado pela Câmara, destinado a mostrar aos visitantes
este rico património, e que nos levou a percorrer principalmente o centro histórica de Ovar,
passando pelas ruas Dr. José Falcão, Cândido dos Reis, Heliodoro Salgado, 31 de
janeiro, Luís de Camões e Alexandre Herculano.
Ao longo do
percurso, que foi conduzido pela nossa guia de um modo dinâmico e didático, fomos
tomando conhecimento das várias técnicas de fabrico do azulejo (a estampilhagem
semi-industrial, a estampilhagem industrial, o relevo, etc.), da diversidade
dos padrões decorativos utilizados (os motivos geométricos e florais, o estilo
Arte Nova a influência pombalina) e da sua evolução cromática, desde o
tradicional azul aos tons polícromos.
Recorde-se
que até à primeira metade do século XIX os azulejos de fachada eram pouco
utilizados em Portugal, e foi apenas a partir desse período que se assistiu à proliferação
da sua utilização, como revestimento e decoração das fachadas dos edifícios civis,
constituindo então um meio de distinção social dos respectivos proprietários.
Aqui em Ovar,
aquele que se
supõe ter sido um dos primeiros painéis de azulejos utilizado numa fachada,
terá sido produzido no ano de 1825, com pintura à mão livre e estampilhagem.
A visita
prosseguiu com uma interessante experiência no Atelier de Conservação e
Restauro do Azulejo, situado na Escola de Artes e Ofícios de Ovar, na qual
tivemos a oportunidade de revelar os nossos dotes artísticos, na estampagem de
azulejos polícromos, utilizando as cores amarelo e azul.
Este momento foi
o culminar de um processo de aprendizagem sobre aqueles pedaços de cerâmica, cuja
importância no nosso país está bem traduzida nesta afirmação de José Meco, prestigiado historiador
da arte do azulejo: “Embora a origem do
azulejo não seja portuguesa, em nenhum outro país do continente europeu como em
Portugal este material recebeu um tratamento tão expressivo e original, bem adaptado
aos vários condicionalismos económicos, sociais e culturais específicos, nem
foi utilizado de maneira tão complexa e dilatada, com fins que transcendem
largamente um mero papel decorativo.».
Ainda antes do
almoço, visitámos a Igreja de Válega, cuja construção
se iniciou em 1746, mas que as obras arrastaram-se por mais de um século, continuando a
receber intervenções até ao século XX.
De estilo barroco, este templo surpreendeu-nos pela imponente fachada
principal toda revestida a azulejos representando cenas bíblicas e religiosas,
feitos na Fábrica Aleluia de Aveiro já na segunda metade do século XX.
E a hora já ia
adiantada quando nos dirigimos, já um pouco esfomeados, para o Restaurante
“Gaby – A Minha Casa”, onde nos deliciámos com uma excelente vitela no forno,
cozinhada superiormente pela D. Gabriela.
Num apontamento
cultural, que fica sempre bem numa evocação gastronómica, diremos que a vitela
pertencia à raça Marinhoa, cujas referências mais antigas remontam ao final do
século XIX, e que está relacionada com as marinhas da região costeira da Beira
Litoral, compreendendo os concelhos de Aveiro, Ílhavo, Vagos,
Ovar, Murtosa e Estarreja. São animais alimentados com pastagens e forragens da
Região o
que, para além da qualidade intrínseca da carne, lhes confere
excelentes atributos organoléticos.
No final do
repasto registou-se uma verdadeira corrida ao famoso pão-de-ló de Ovar, que
rapidamente esgotou o stock da D. Gabriela, havendo mesmo viajantes que, fruto
de algum açambarcamento, ficaram na triste situação de regressarem a Lisboa de
mãos a abanar.
Como balanço
final poderá dizer-se que foi um fim-de-semana bem preenchido, que em S. João
da Madeira, nos possibilitou a descoberta de um ambicioso projecto museológico,
surpreendente pela sua qualidade, e em Ovar nos levou a percorrer as galerias a
céu aberto, de um rico e original museu.
A juntar a
tudo isto, ainda tivemos o ensejo de mostrar os nossos talentos na estampagem de
um azulejo, que em breve nos será enviado, constituindo uma recordação viva
desta enriquecedora visita.
2 Comments:
“fim-de-semana perfeito” não há mesmo mais nada acrescentar.
Óptimo fim de semana. Tudo perfeito e matei saudades de Ovar, que é a terra do meu pai. Obrigada
Rosário
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