25 Abril 74 - as memórias do Albano
Nessa pequena agenda, no dia 25 de Abril de 1974, apenas se lê:
FAÇO 2 MESES DE NINDA - VEIO CORREIO – GOLPE EM LISBOA? – 127
Tive então a ideia de estruturar este curto depoimento com essas quatro referências, procurando recordar o seu conteúdo não explícito.
“FAÇO DOIS MESES DE NINDA”
No dia 25 de Abril encontrava-me em Ninda, no Leste de Angola, fazendo a construção de um aquartelamento. A minha companhia estava colocada no Luso (hoje Luena) a 1.300Km de Luanda. Era uma zona plana com baixa densidade populacional. Ninda ficava perto da fronteira com a Zâmbia. Eram, como lhes chamou Lobo Antunes que também lá esteve, “os cus de judas“. Nós dizíamos ”as terras do fim do mundo”. As instalações eram precárias pois o aquartelamento… ainda não estava construído. Faltavam-me dois meses para acabar a obra e voltar para o Luso.
“ O CORREIO “
Era o que esperávamos sempre ansiosamente. Era a nossa ligação à família, aos amigos, ao mundo. A chegada irregular do heli como correio era um “acontecimento”. Dizia-se que “correio e cerveja “era o que nunca podia faltar. Recordo-me da alegria dos que recebiam carta (aerograma) contrastando com a tristeza dos que a não recebiam.
“GOLPE EM LISBOA?”
Esta estranha referência com interrogação resulta de no dia 25 a rádio em Angola ter censurado todas as notícias sobre o movimento revolucionário. Ouvimos apenas ao fim do dia em rádios estrangeiras as notícias do golpe muito incompletas e contraditórias. Penso que nessa noite não dormi… com o ponto de interrogação na cabeça. Só no dia seguinte começámos a perceber o que se estava a passar e escrevi na agenda “o golpe das F.A. parece vitorioso”.
“127”
Eram os dias que me faltavam para o fim da comissão e que nós logo no início do ano marcávamos nos 365 dias das nossas agendas. Para mim esses 127 dias foram como que um sonho: o MPLA cessou as hostilidades, regressei logo em 5 de Maio à sede da minha Companhia no Luso, e aí integrei a comissão MFA para a Zona Militar Leste; na minha Companhia coordenei uma campanha de “consciencialização e politização” dirigida aos nossos militares. Fizemos jornais (o “Construir”), ocupámos a Rádio do Moxico, etc.
Era o nosso 25 de Abril! Era o fim de uma guerra colonial injusta!
Termino com um poema de António Cardoso, poeta angolano, publicado no nº 1 do nosso jornal, o “Construir”, em julho de 1974.
Quando será que este cacimbo nos abandona
e o Sol virá sorrir por cima do meu telhado?
... antigamente nos meus tempos de menino,
o meu telhado de zinco
tinha furos pequenos
por onde espreitava o Sol…
antigamente…
quando será que este céu pesado de chumbo nos abandona
e aquele azul antigo
virá sorrir por cima do meu telhado!
Achei este poema, de mais de quarenta anos, muito atual e adequado para fim de um depoimento em quarentena.
Albano Pereira, em Abril 2020
6 Comments:
Muito Bom Albano
Mais um interessante testemunho, desta vez a partir de Angola, de dentro da própria Guerra Colonial, que o 25 de Abril veio pôr fim. Este conjunto de participações é como um puzzle que se vai construindo, em que cada uma das peças reflete um ponto de vista, em função do sítio, da idade, da ocupação, da consciência política de cada um dos intervenientes.
No final vamos ter uma visão rica e multifacetada do dia inicial…
Abraço ao camarada irmão e ao colectivo do Atrium
Embora longe acabaste por estar integrado no era necessário fazer na maior ex-colónia para que o 25 de abril, também por aí, saísse vitorioso. Não conhecia em detalhe esses dados e gostei de saber.
Abraço
Sabia que tinhas lá estado, mas a descrição dos pormenores ajuda a imaginar a vivência.
Não temos telhados de zinco com buracos, mas temos uns buracos políticos que por vezes não deixam perceber bem o sol!
Mas.. 25 de Abril Sempre
A vivência de quem esteve na frente militar da guerra colonial ajuda a perceber a importância dos milicianos em todo o processo de politização da forças armadas. O nosso amigo Albano esteve lá e a sua memória ajuda-nos a perceber aquele difícil tempo.
abraço.
Albaninho
Pensava que os aerogramas eram a maior alegria para quem estava por aquelas paragens. Afinal a cervejinha estava ao mesmo nível. Era justo,
“correio e cerveja “era o que nunca podia faltar.
Estiveste pouco tempo em Angola, mas foram vividos com muitas emoções, muita agitação e muita coisa a acontecer. O que terás sentido quando recebeste o correio “GOLPE EM LISBOA?”.
É difícil imaginar como foram os teus dias e as tuas noites nos dias seguintes.
Mas pelo teu texto não tenho dúvidas que foram muitos momentos angustiantes “Penso que nessa noite não dormi… com o ponto de interrogação na cabeça”
e ao mesmo tempo felizes e de esperança
“o golpe das F.A. parece vitorioso”
“Para mim esses 127 dias foram como que um sonho”).
E O SONHO TORNOU-SE REALIDADE.
Bonito poema o que partilhas. Retribuo, com um de Manuel Alegre, que foi preso pela PIDE em Luanda e que na cadeia conheceu António Cardoso, como sabes.
TROVA DO VENTO QUE PASSA
Pergunto ao vento que passa
Notícias do meu país
O vento cala a desgraça
O vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.
Manuel Alegre
A recordar, O BLOGUE NÃO PODE PARAR
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