domingo, dezembro 05, 2010

O Atrium reencontra-se com José Saramago 26 anos depois

“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”, escreveu Saramago na epígrafe de A Viagem do Elefante, e assim foi mais uma vez.
Vinte e seis anos oito meses e alguns dias depois reencontrámos o Autor e o Homem, desta vez sem a sua presença física, mas com o seu legado de génio indiscutível da literatura, de pensador do mundo e da humanidade que, sem esquecer as facetas mais polémicas da sua intervenção cívica e política, fazem dele uma figura incontornável no panorama da cultura portuguesa.

No já distante 23 de Março de 1984, numa acanhada sala da Cooperativa de Ensino de Benfica (CEBE), a propósito da publicação do Memorial do Convento, tivemos a feliz oportunidade de dialogar com o Autor, que apesar da sua idade já madura, dava os primeiros e decisivos passos que o haveriam de levar desde a pequena aldeia de Azinhaga do Ribatejo, até ao reconhecimento e à projecção mundial que culminaria com a atribuição do Prémio Nobel da Literatura, o primeiro, e até agora o único, atribuído a um escritor de língua portuguesa.
Foi no passado dia 2 de Dezembro que estivemos de novo com Saramago, e ele esteve também connosco. Afinal aconteceu a mesma magia que pôs o heterónimo Ricardo Reis, personagem duplamente ficcional tornada realidade, a dialogar com o seu falecido criador, Fernando Pessoa, qual realidade tornada ficção. Mas no fundo como afirmou o próprio Autor: “Ficção é tudo. Tudo é ficção. No fundo, creio mesmo que nós somos seres de ficção criados e alimentados por ficções”.
Na Bagagem do Viajante, reencontrámo-nos com o Homem, com as suas raízes, com os ramos e os enxertos da sua árvore genealógica. Recordámos o seu bisavô berbere que veio de longe, de uma África misteriosa, pastor talvez, talvez salteador. Evocámos o homem mais sábio que Saramago conheceu em toda a sua vida, o avô Jerónimo Melrinho que não sabia ler nem escrever, pastor de porcos que quando pressentiu a proximidade da morte, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver. Relembrámos a avó Josefa Caixinha, de uma formosura invulgar quando rapariga, que tinha tanta pena de morrer só porque o mundo era bonito, e que era capaz de dormir com os bácoros como se fossem os seus próprios filhos. Lembrámos a sua mãe, Maria da Piedade, ela também analfabeta, que, com inusitada intuição, lhe ofereceu o seu primeiro livro. Tinha o Autor então 13 anos.
Revivemos o seu discurso perante a Real Academia Sueca, em 7 de Outubro de 1998, que intitulou com humildade e lucidez, De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz. Nele faz uma viagem pelas suas raízes e pelas suas obras, a partir da evocação sentida dos seus antepassados. Afinal o Homem que recebia a consagração mundial apresentava-se na sua verdadeira dimensão de alguém que um dia foi ajuda de um avô nas suas andanças de pastor, que com ele cavou a terra e cortou a lenha para o lume, que fez subir a água do poço comunitário e a transportou ao ombro, que pela madrugada recolheu a palha que haveria de servir de cama para o gado e que por fim, em noites quentes de Verão, se ia deitar debaixo da figueira grande, adormecendo a ouvir as histórias que o avô lhe ia contando.
Voltámos a encontrar os homens e as mulheres do Alentejo, os condenados da terra obrigados a alugar a força dos seus braços a troco de um salário de miséria. Foi através do romance Levantado do Chão que recordámos a Unidade Colectiva de Produção Boa Esperança, na vila do Lavre, perto de Montemor-o-Novo, a difícil vida dos trabalhadores rurais na primeira metade do século XX, e a luta que culminou com a sua libertação do jugo de três gerações de uma família de latifundiários, os Mau-Tempo.
Mais uma vez nos deixámos surpreender com o real imaginário, ou o imaginário real, que brota das páginas do Ano da Morte de Ricardo Reis, que o Autor constrói a partir de um poema de Ricardo Reis, porque não podia resignar-se que um espírito superior tivesse podido conceber este verso cruel: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo.”
É numa Lisboa triste, sombria, fustigada por chuvas quase constantes, cenário certo para a consolidação da ditadura salazarista, que Ricardo Reis desembarca e inicia uma deambulação mágica durante a qual se cruza diversas vezes com o fantasma de Pessoa e se confronta com um mundo que não entende. O seu tempo tinha chegado ao fim e assim inicia a viagem final na companhia do poeta, seu criador.
E de súbito o Autor lembra-nos que a Bíblia é um manual de maus costumes. É a ironia e a mordacidade de Saramago que percorrem Caim, dando ao leitor o espectáculo de uma guerra entre o criador e a sua criatura.
Lemos ainda alguns dos Poemas Possíveis, publicados nos anos sessenta, e com a leitura de algumas das suas Citações, tomámos contacto com o Homem comprometido na luta pelas causas dos mais desfavorecidos, que sempre primou pela seriedade intelectual e pela coerência das suas posições.
Por fim assistimos a uma animação feita a partir do conto para crianças, escrito por Saramago nos começos dos anos 70, A maior flor do mundo. No final o Autor interroga-se e interroga-nos: E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?
Se a morte, como afirmou um dia Saramago, é uma coisa que se resume assim: “Tu estavas e agora já não estás”, então este reencontro mostrou-nos que ele não morreu. Continua a estar nos livros que escreveu, nas personagens que criou, nas suas inquietações e nas suas opiniões, por vezes controversas e provocadoras, mas sempre estimulantes.
A noite já ia adiantada quando a sessão terminou, e foi então que na rua deserta, alguns de nós julgaram ver um vulto de um homem alto, envergando uma gabardina comprida, a afastar-se em passo firme na direcção da Avenida do Colégio Militar. Debaixo do braço transportava vários livros e atrás dele seguiam alguns cães, em respeitoso silêncio.
No seu rosto enrugado, emoldurado por uns óculos de aros grossos, adivinhou-se um contido sorriso de criança.
No céu nenhuma estrela cintilou, nuvens escuras anunciavam a possibilidade de fortes chuvadas sobre Lisboa...