O Atrium pelo percurso da estátua de D. José I, da Fundição de Cima até à Praça do Comércio
Cerca de 239 anos depois, o Atrium,
guiado pelo Albano, percorreu o trajecto da zorra que transportou a estátua do “clementíssimo
soberano”, destinada a perpetuar o reconhecimento pelo “grande
número de sábias e justíssimas providencias para a manutenção e allivio do fiel
povo desta capital”, por ele praticadas.
Foi numa manhã enevoada, do dia 9 de
Março, que nos encontrámos na escadaria do Panteão de Stª Engrácia, para
reconstituir o trajecto que se iniciou no longínquo dia 22 de Maio de 1775 e
que terminou quatro dias depois na Praça do Comércio. Foram então três dias e meio de festejos
populares que acompanharam a estátua do “clementíssimo soberano”, sempre
coberta por uma cortina de tecido onde figurava um letreiro dourado e em latim,
que dizia “A nuvem não cobre o Sol”.
Iniciámos o nosso percurso na Sala do
Gesso da então “Fundição de Cima” (mandada construir por
D. João V, e assim chamada, por oposição à “Fundição de Baixo”, do tempo de D.
Manuel I, existente no local onde hoje se situa o Museu Militar), local onde
foi fundida a real estátua pelo Brigadeiro Bartolomeu da Costa, numa liga
metálica, no tempo incrível de 7 minutos. Nesta Sala do Gesso pudemos apreciar
o modelo em gesso e em tamanho natural da estátua do D. José I, da autoria de
Machado de Castro (nesta sala também existem outros modelos de estátuas
executadas posteriormente, tais como a do Duque de Saldanha, do Dr. Sousa
Martins, de Afonso de Albuquerque e do Marquês Sá da Bandeira, entre outras).
A partir daqui seguimos o trilho da
zorra, desta vez sabiamente conduzida pelo Albano (que substituiu por umas horas
o Brigadeiro Bartolomeu), no seu percurso de 4 dias, devidamente assinalado pela
pintura do chão de ferraduras de cavalo, mas curiosamente (?) pintadas às
avessas… (talvez uma premonição do pintor, que já adivinhava um país a andar
para trás…).
A primeira paragem foi no actual
Museu Militar, onde tivemos oportunidade de ver uma réplica da zorra (desenhada
pelo próprio Brigadeiro) que transportou a estátua. As suas dimensões foram por
todos devidamente apreciadas, e por momentos imaginámos e esforço hercúleo dos
homens que a puxaram, pois a real figura não poderia ser deslocada por bestas…
Passámos depois pela Ermida do Senhor
da Boa Nova (uma construção barroca de 1748, que hoje funciona como igreja
ortodoxa), meio enterrada devido à construção da Rua do Museu da Artilharia,
feita propositadamente, à custa de algumas demolições, para possibilitar a
passagem da zorra.
No nosso percurso, tivemos a
oportunidade de apreciar o edifício da Alfândega de Lisboa, um edifício
pombalino construído em 1766, para as funções de Celeiro Público (daí a
designação do local por Terreiro do Trigo). Dispunha de um cais privativo, já
desaparecido, para carga e descarga dos cereais, sendo de destacar a sua
fachada sul, com contrafortes de grande solidez, para suportar a pressão das
toneladas de cereais aí desembarcadas.
Dada a sua actualidade, não
resistimos de transcrever, mantendo o português da época (ainda muito distante
do nosso pobre (des)acordo ortográfico…), a placa existente na sua fachada.
REY E PAY CLEMENTISSIMO
DOS SEUS VASSALLOS
PARA SEGURAR A ABUNDANCIA DE PAO
AOS MORADORES DA SUA NOBRE E LEAL CIDADE DE LISBOA
AOS MORADORES DA SUA NOBRE E LEAL CIDADE DE LISBOA
E DESTERRAR DELA A IMPIEDADE DOS
MONOPOLIOS
DEBAIXO DA INSPECÇAO DO SENADO DA CAMARA
SENDO PRESIDENTE DELLE PAULO DE CARVALHO
DE MENDONÇA
MANDOU EDIFICAR DESDE OS FUNDAMENTOS ESTE
CELLEIRO PÚBLICO
ANNO M DCCLXVI
Deixando para trás a proverbial “impiedade dos monopólios”, (que pelos vistos já vem de muito longe), chegámos ao Chafariz D’el Rei, que terá sido o primeiro chafariz público na cidade de Lisboa. A sua origem remonta a tempos muçulmanos, e é a partir do reinado de D. Dinis que passa a ser designado por Chafariz d’El Rei.
Aproveita as
excelentes águas da encosta de Alfama e chegou a ter nove bicas em
funcionamento. Cada bica era exclusiva de um grupo social, não esquecendo os
mareantes, e o abastecimento das naus.
Passamos
seguidamente pelo Campo das Cebolas, Praça da Ribeira Velha antes do terramoto
de 1755. A sua actual designação deve-se ao facto de a cebola passar a ser o
produto aqui descarregado e armazenado em
grande quantidade. Uma importante referência desta praça é a Casa dos Bicos,
onde hoje está instalada a Fundação José Saramago. O edifício original, que
serviu, entre muitas outras funções, de sede à Associação do Comércio Marítimo
da Índia, foi mandado construir em 1523, por Brás de Albuquerque, filho de
Afonso de Albuquerque, aquando do seu regresso de uma viagem a Itália.
A última
paragem antes do objectivo final da caminhada, foi a Igreja da Conceição Velha.
Ela resultou da reconstrução, após o
terramoto de 1755, da antiga Igreja de Nossa
Senhora da Misericórdia de Lisboa, sede da primeira Misericórdia do país,
e que constituía o segundo maior templo da Lisboa manuelina, só ultrapassado
pelo Mosteiro dos Jerónimos. A sua bela fachada é uma das melhores estruturas
do manuelino, sobrevivente ao grande sismo.
E finalmente
chegámos ao final da caminhada. Não foram os quatro dias que a zorra demorou,
mas foram quase quatro horas bem aproveitadas para conhecermos melhor a nossa
cidade e a nossa história.
Recuemos
então ao dia 27 de Maio de 1775, era um sábado. Sob a orientação directa do
Brigadeiro Bartolomeu, a difícil operação da colocação da estátua em cima do
pedestal está terminada. Os esforçados trabalhadores executantes da tarefa
viram recompensados o seu empenho, pois “mandou o Marquez de Pombal gratificar todo o
pessoal ali empregado, quer do arsenal, quer das obras públicas, com a
importância correspondente a três dias de jornal, e dando o juiz do povo e da
Casa dos Vinte e Quatro uma lauta merenda aos trabalhadores que lidaram com os
sarilhos”.
Precisamente
dez dias depois, na tarde do dia 6 de Junho, perante a família real, o corpo
diplomático, o clero, a corte, os tribunais, a tropa, o povo, foi então
inaugurado solenemente o monumento que estava coberto com uma grande cortina de
tecido de seda carmezim, sendo esta descerrada pelo Marquês de Pombal e por seu
filho, o Conde de Oeiras, então Presidente do Senado da Câmara, que puxaram os
cordões.
Rezam as
crónicas que, tal como hoje, estas inaugurações são momentos de grande
exaltação patriótica, bem aproveitados pelos poderes instituídos para afirmarem
a sua grandeza, em troco de festa, comida e bebida para distrair o povo…
Deliciemo-nos com estas pérolas literárias que descrevem as festividades
havidas: “…À noite houve luminárias geraes, opera lyrica ao teatro real, a que
assistiu o rei e a côrte, e grande sarau na Casa dos Vinte e Quatro… a
iluminação da praça do Commércio, feita por mais de 28000 lumes, não contando
com os lustres que pendiam nas arcadas, oferecia um aspecto surpreendente… Nos
dias 7 e 8 fôram as deslumbrantes festas realizadas pelo senado e pela Casa dos
Vinte e Quatro na praça do Commercio, em que figuravam oito carros alegóricos,
havendo danças, musicas, iluminação e vistosos fogos de artificio… O monarca,
associando-se ao público regozijo, decretou amnistia geral… No dia 7, a seguir
aos festejos na praça do Commercio, ofereceu o Senado uma esplendida função na
casa da alfândega, constando de serenata em italiano, ceia e baile… ”.
Mudam-se os
tempos… mas certos tiques do poder instalado não mudam. Vão-se perpetuando ao
longo das épocas…
E foi diante
da estátua de El Rei, curiosamente rodeada de material destinado a uma passagem
de modelos da Moda Lisboa, que a caminhada terminou. Foi um mergulho na nossa
história, na história desta nossa bela cidade de Lisboa, que nos enriqueceu e
que também nos abriu o apetite para um lauto almoço que se iria concretizar nos
restaurantes da baixa pombalina.
1 Comments:
... e é assim o ATRIUM! um grupo de amigos que PARTILHAM CONHECIMENTOS e EXPERIÊNCIAS... Obrigado mano Albano!
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