Uma homenagem aos marinheiros que em 1936 ousaram afrontar Salazar
Num cais do Arsenal, um grupo de marinheiros, protegidos pela escuridão, embarca silenciosamente num rebocador e ruma em marcha lenta na direcção dos navios de guerra estacionados na doca da Marinha que, no negrume da noite, se distinguem apenas pelas suas luzes de posição.
O seu objectivo: ocupar o Aviso de 1ª Classe Bartolomeu Dias. A revolta tinha começado! O céu era o limite para as suas ambições!
Na noite de 27 de Outubro de 2011, 75 anos decorridos sobre estes acontecimentos, o Atrium recordou a memória de um episódio pouco conhecido da resistência anti-fascista em Portugal, prestando uma homenagem aos jovens marinheiros que, contra todos os ventos e marés, ousaram enfrentar as forças do regime, arriscando as suas vidas em prol da liberdade.
Nesta sessão foi feita uma apresentação focando os principais aspectos da situação nacional e internacional da época, para além dos aspectos particulares que rodearam esta revolta.
Foi também salientado o reflexo desta revolta na literatura portuguesa, com destaque para os livros “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago e “Sinais de Fogo” de Jorge de Sena.
Junta-se o texto que serviu de suporte à apresentação, da autoria do Albano.
A REVOLTA DOS MARINHEIROS – 1936
INTRODUÇÃO
O tema da sessão de hoje: A REVOLTA DOS MARINHEIROS – 1936, aborda um episódio pouco conhecido da resistência anti-fascista em Portugal.
No dia 8 de Setembro de 1936 um grupo de marinheiros revoltou-se e tentou apossar-se do comando de três navios de guerra e sair a barra do Tejo. Apenas 2 dos navios estavam manobráveis - Afonso de Albuquerque e Dão.
Bombardeados a partir dos fortes do Alto do Duque e Almada acabam por render-se.
As considerações que iremos fazer têm como base o recente livro de Gisela Santos de Oliveira “A REVOLTA DOS MARINHEIROS de 1936”, resultado da investigação desenvolvida no âmbito da sua tese de licenciatura em Jornalismo.
Procuraremos nesta intervenção “ ilustrada” por fotos montadas pelo Zé Carlos dar uma visão global sobre a Revolta, contextualizando-a em termos nacionais e internacionais: Revolta da Madeira, Greve 1934, Frentes Populares, Guerra Civil de Espanha, VII Congresso da internacional Comunista (1935), Situação na Armada, condições de vida dos marinheiros, ORA, motivos da revolta, revolta e consequências da revolta.
AS REVOLTAS NAVAIS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
As crises militares a nível mundial na primeira metade do século XX ocorreram com maior frequência nas forças navais:
- REVOLUÇÃO DO COURAÇADO POTEMKIN -1905Mar Negro – Odessa
-REVOLTA DA ESQUADRA BRASILEIRA – 1910 – por melhores condições de vida e abolição dos castigos físicos.
-REVOLTA DA ESQUADRA AUSTRO-HÚNGARA do Adriático – 1918 contra a guerra
-ESQUADRA ALEMÃ – 1918 – contra a continuação da guerra já perdida Foi o ponto de partida da revolução que acabará com o Império e proclamará a República
-ESQUADRA FRANCESA – 1918/19 Mar Negro contra a participação na guerra contra a Rússia Soviética.
-REVOLTA DE KRONSTADT 1921 Marinheiros soviéticos contra aspectos que estava a tomar a revolução bolchevique.
-REVOLTAS DA ESQUADRA CHILENA 1925 e 1931
-GUERRA CIVIL DE ESPANHA – pela primeira vez os papéis invertem-se. Em 1936 os marinheiros revoltam-se em defesa do Governo Republicano Democrático
Como explicar a recorrência dos movimentos sociais dos marinheiros? Apresentam-se várias hipóteses: a complexidade técnica dos navios modernos, com uma maior especialização e as estruturas arcaicas em todas as marinhas, apesar dessas mudanças. No entanto cada revolta naval tem as suas características e elementos detonantes próprios
CONTEXTO INTERNACIONAL À DATA DA REVOLTA DOS MARINHEIROS DE 1936
Anos muito conturbados na Europa - convulsões na década de 20 e crise económica de 1929 – desvalorização da moeda, ameaça fascista, ascensão de Hitler, Frente Popular em França (Maio de 36), VII Congresso da IC de 1935 que apoia a formação de Frentes Nacionais. Frente Popular em Espanha Fevereiro de 1936, GUERRA CIVIL DE ESPANHA (1936 / 1939). Dado o cenário internacional não se pode considerar a GCE Como um conflito puramente restrito ao âmbito nacional. É um conflito entre duas concepções do mundo. É o campo de ensaios da 2ª Guerra Mundial (1939/45).
A posição do governo de Salazar é nos aspectos principais conhecida. A posição dos antifascistas portugueses, com todas as limitações impostas pelo regime, é de apoio à República e à luta antifascista.
CONTEXTO NACIONAL
Desde a sua criação o regime teve de enfrentar vários levantamentos da oposição republicana e do movimento operário (1927, 1931,1934). É implementada uma política violentamente repressiva. Os grupos republicanos estão divididos e inoperantes, o movimento anarquista é dizimado, o PCP assume o papel relevante nas lutas.
A SITUAÇÃO DA ARMADA EM 1936
Nesta época, a política de defesa do Estado Novo vai concentrar-se no rearmamento das F.A., com especial incidência na Marinha. Procede-se à renovação da esquadra com a aquisição de navios no estrangeiro (principalmente em Inglaterra) – casos do Afonso de Albuquerque, Bartolomeu Dias e Dão, e construção nos estaleiros portugueses de outros – caso do Douro.
Sobre este caso é interessante ler o panfleto editado pelo governo (pág. 204).
Com a renovação da Armada o governo pretende reforçar a fidelidade dos efectivos de maiores patentes, e consequentemente de um ramo das F.A. tradicionalmente de maiores influências republicanas.
A revolta dos marinheiros confirma estas considerações pois não se verificou a participação de qualquer oficial.
OS MARINHEIROS
Apesar do cenário composto por uma Armada renovada o que se passa dentro dos navios é diferente. São muitas as queixas dos marinheiros. Ler as afirmações do marinheiro João Borda um dos organizadores da revolta (pág. 45)
A ORA (Organização Revolucionária da Armada) e O MARINHEIRO VERMELHO
A ORA criada em 1932 no navio Vasco da Gama era o braço do PCP na Armada. Dotada de alguma autonomia estava ligada aos problemas dos marinheiros. (autonomia confirmada com o processo da revolta). Assume grande expansão em resultado do ambiente já existente e do erro do governo ao dispersar o núcleo inicial do Vasco da Gama pelos restantes navios da Esquadra.
É significativo o facto de cerca de 20% do efectivos do PCP serem constituídos por marinheiros da marinha de guerra.
O Jornal O MARINHEIRO VERMELHO era o órgão da ORA. Chegou a tirar 1500 exemplares, sendo 700 pagos. A proveniência comunista era patente no apelo na capa. Os artigos abordados têm a ver com a luta dos marinheiros e com a exaltação do regime Soviético. Ver dois exemplos nas páginas 132 e 165.
Em fins de 1935 o governo apercebendo-se do ambiente que se vivia na Marinha, aperta o cerco e prende cerca de 30 marinheiros. É um rude golpe para a ORA.
Outro episódio que exprime a contestação reinante foi a desobediência dos marinheiros do Afonso de Albuquerque na celebração dos 10 anos do 28 de Maio de 1926.
A PREPARAÇÃO DA REVOLTA
Está-se em 1936. A Guerra Civil de Espanha inicia-se no dia 17 de Julho de 1936. O Estado Novo intensifica uma campanha contra o “perigo vermelho”. São presos inúmeros comunistas. A ORA sente-se cada vez mais ameaçada.
Surge também outro episódio que aumenta a revolta dos marinheiros que resulta da ida do Afonso de Albuquerque a Espanha em Agosto para recolher emigrantes portugueses. De regresso a Portugal são detidos e licenciados 17 marinheiros.
Resolve-se avançar com a sublevação dos navios: Afonso de Albuquerque, Dão, Bartolomeu Dias, Pedro Nunes e Gil Eanes, dos quais entram em acção os 2 primeiros.
O objectivo era sair da barra do Tejo, ficar fora do alcance dos fortes e fazer um ultimato ao governo para libertar ou reintegrar camaradas. É marcada a data para o início de Setembro.
Ao fazer-se uma pesquisa nos jornais da época, a razão mais frequentemente apontada, que é também a versão do governo, é a dos marinheiros quererem fugir para Espanha para entregar os navios à Republica Espanhola.
Todas as declarações dos marinheiros negam esta versão, o que curiosamente o Tribunal Militar confirma (pág. 185). Tudo indica que os objectivos são a libertação ou reintegração de marinheiros e eventualmente a ida a Angra do Heroísmo para libertar presos políticos, não se subestimando a possibilidade de começar um levantamento nacional a partir das ilhas. O que parece algo utópico.
Posição do PCP. Contacto de Álvaro Cunhal com a direcção da ORA em que este salienta a imprudência de uma revolução deste tipo.
O avante de Setembro de 1937 a propósito afirma: ”… sob o ponto de vista táctico, essa jornada forneceu-nos mais uma prova de que devemos condenar o puchismo como meio de luta e que a única forma de derrubar o fascismo é a preparação e a mobilização de massas em volta de uma poderosa Frente Popular”.
A REVOLTA
À meia-noite do dia 8 de Setembro de 1936 deveria começar a revolta. Descrevem-se em síntese as várias acções:
Às 22h um grupo de marinheiros embarca no Arsenal num rebocador com destino ao Bartolomeu Dias.
Ocupação do Bartolomeu Dias. Uma avaria nas caldeiras impede a deslocação do navio.
Os marinheiros que ocupam o Bartolomeu Dias decidem passar para o Afonso de Albuquerque com armamento.
O gasolina do Afonso de Albuquerque que fora ao Cais do Sodré recolher marinheiros avaria a meio do rio.
O Afonso de Albuquerque é ocupado.
O Dão é ocupado.
Em terra o governo que estava avisado da revolta passa à acção. O Ministro da Marinha envia o tenente Henrique Tenreiro num rebocador ver o que se passa.
Dirige-se ao Vouga onde está tudo calmo. Aproxima-se do Afonso de Albuquerque e percebe que o navio está ocupado. Apesar de metralhado consegue regressar a terra e avisar as forças do governo.
Salazar que estava no Vimeiro é informado e manda abrir fogo sobre os navios.
Os fortes do Bom Sucesso e de Almada entram em acção bombardeando os navios.
O Bartolomeu Dias tenta sair da barra encostado à margem sul, mas atingido rende-se içando a
bandeira branca. Quatro marinheiros morreram e há inúmeros feridos. Alguns marinheiros tentam fugir nas balsas ou a nado e são apanhados nas duas margens pelas forças do regime (PSP e GNR).
O Dão tenta também fugir envolto numa de fumo mas tem a mesma sorte do Afonso Albuquerque, com 1 morto e muitos feridos.
Os revoltosos são conduzidos para o Governo Civil e depois para a Mitra. Os responsáveis são dispersos por várias esquadras e mantidos incomunicáveis. São presos mais de 100 marinheiros.
CONSEQUÊNCIAS DA REVOLTA
A revolta foi abortada. Para os jovens marinheiros o balanço é pesado:
5 mortos, dezenas de feridos e mais de 100 presos.
Algumas serão as razões apresentadas para o fracasso:
Projecto utópico e isolado das outras forças antifascistas (civis, militares, etc.).
Planeamento muito deficiente.
Denúncias e Sabotagens prévias feitas por fiéis do regime.
Falta de adesão da classe de oficiais.
Azares imprevisíveis.
O Governo é rápido no aproveitamento da situação desenvolvendo uma campanha de desinformação, através de notas oficiosas e dos jornais. É desenvolvida a ideia que os revoltosos queriam levar os navios para Espanha para entregá-los à República. Curiosa a acta de acusação aquando dos julgamentos no Tribunal Militar que desmente esta afirmação (pág. 185).
CAMPANHA REPRESSIVA
Salazar não vai perdoar a insubordinação e não permite atenuantes – por sua vontade os marinheiros seriam castigados sem julgamento, o que só não acontece por pressão da marinha.
Julgamento imediato e rápido dos revoltosos num Tribunal Militar Especial em 13 e 14 de Outubro.
Durante o julgamento fracassa a tentativa de envolver o PCP na revolta.
São julgados 91 marinheiros implicados na revolta (a maioria com idades entre os 18 e 20 anos).
São ilibados 10, e 81 sofrem penas de 3 a 20 anos de prisão.
Irão “inaugurar” o campo de concentração do Tarrafal 34 dos quais 5 lá falecem.
Mesmo os oficiais que não tinham participado também sofrem as consequências.
APROVEITAMENTO DO REGIME
Salazar, apesar do que é referido pelo TME, insiste na tese de que o objectivo da revolta era a entrega dos navios a Espanha – ideia que persistiu por longos anos.
Poucos dias após a revolta são publicados D.L. com medidas repressivas duríssimas.
CONCLUSÃO
Em síntese pode-se concluir que a REVOLTA DOS JOVENS MARINHEIROS teve como motivo imediato a reintegração e libertação de camaradas, foi influenciada pela situação dos marinheiros, pela Guerra Civil de Espanha, pelo movimento comunista, e por mais factores de uma época conturbada.
Pese embora um planeamento deficiente e algum voluntarismo, o 8 de Setembro não deixa de ter o valor que lhe imprimiram os jovens marinheiros que corajosamente ousaram lutar pelos seus direitos, e que por esse acto sofreram na pele uma cruel repressão.
Lembrar esse acto de coragem é o mínimo que, com gente de esquerda, podemos fazer para honrar a sua memória.
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