quinta-feira, março 22, 2018

Um serão em Carnide, na companhia de um Correspondente Comercial, de um Médico, de um Engenheiro Naval, de um Ajudante de Guarda-livros e de um Camponês que é Mestre


Naquela sala da Junta de Freguesia de Carnide, exactamente 130 anos menos 90 dias, depois do nascimento do ortónimo, e 129 anos e 1 mês, depois do nascimento do mestre heterónimo, com a preciosa mediação do José Correia, deu-se um encontro do Atrium com o Fernando Pessoa, o Ricardo Reis, o Álvaro Campos, o Bernardo Soares e o Mestre Alberto Caeiro.
E coincidência, ou talvez não (lembremo-nos que a numerologia era uma das áreas que Pessoa estudou profundamente…), num rápido exercício matemático, verificamos que: 1+3+0+9+0 = 13 e 1+2+9+1 = 13, e se somarmos o número de letras das palavras Atrium e Carnide, o resultado é ainda o 13...
E qual o significado do 13? Ele é formado pelo número 1 que simboliza independência, coragem, originalidade, força, ambição, criatividade, ousadia, iniciativa, persistência, e pelo 3 que exprime autoconfiança, otimismo, entusiasmo, sociabilidade, cordialidade e criatividade.
Ainda acerca do 13, e da numerologia, não resistimos a convidá-los a observar uma nota de dólar, na sua face posterior (podem fazê-lo na internet, se não tiveram uma em casa…). A águia segura numa das garras 13 flechas e na outra um ramo de oliveira com 13 folhas e 13 bagas. O escudo em frente da águia tem 13 listas e existem 13 estrelas sobre a sua cabeça. O lema “E Pluribus Unum”, na faixa que a águia segura na boca, tem 13 letras. Do lado esquerdo está desenhada uma pirâmide com 13 camadas, e o lema “Annuit Coeptis”, sobre a pirâmide, como não podia deixar de ser, é composto por 13 letras… e já que estamos em território dos EUA, uma última curiosidade, na frase “Fora com o Trump” estão lá exactamente as 13 letras…
E com este breve e despretensioso mergulho na ciência da numerologia, pensamos estar criado o ambiente adequado para algumas notas sobre a sessão dedicada a Fernando Pessoa e aos seus mais destacados heterónimos, realizada no passado dia 14 de Março (…deveria ter sido na véspera, no dia 13, mas enfim não se pode ter tudo, só falhámos por um dia…).
No início, José Correia fez uma apresentação do percurso de vida do poeta, desde o seu nascimento em 13 de Junho de 1888, no quarto andar do nº 4 do Largo de São Carlos, até ao seu falecimento em ‎30 de novembro de 1935, no Hospital de São Luís dos Franceses, na Rua Luz Soriano.
E de súbito, após esta apresentação, o espaço onde decorria a sessão, foi literalmente invadido pelos poemas, e pelos seus autores, invocados através das leituras feitas pelos presentes.
Álvaro de Campos, o engenheiro naval de temperamento rebelde e agressivo, irrompeu vociferando, “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”, e lembrando a sua formação académica, acrescentou “Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo” e depois de alguma hesitação, lamentou-se, “Um internado num manicómio é, ao menos, alguém, eu sou um internado num manicómio sem manicómio, estou doido a frio, estou lúcido e louco”, e por fim lá confessou, com a voz nasalada, “Tenho uma grande constipação, … preciso de verdade e de aspirina”.
Ricardo Reis, o médico monárquico, recém-chegado do Brasil pela mão do José Saramago, observava o que se passava à sua volta, meio escondido num canto da sala, enquanto murmurava baixinho, “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo, e ao beber nem recorda que já bebeu na vida…”, para a seguir acrescentar, dando voz ao seu fatalismo tranquilo, “…Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente e sem desassossegos grandes. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, nem invejas que dão movimento demais aos olhos, nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, e sempre iria ter ao mar.”. E depois de um longo suspiro, talvez recordando com saudade as suas musas, Cloe, Neera e Lídia, fontes de inspiração para o classicismo da sua arte poética, remeteu-se a um silêncio contemplativo.
A dada altura, na sala, foi ganhando forma um som que se assemelhava aos chocalhos de um rebanho, mas rebanho, nem vê-lo!… É então que surge, com o seu ar simples de camponês, Alberto Caeiro, que logo tenta explicar aos presentes a razão de tão insólito acontecimento: “Eu nunca guardei rebanhos, mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor, conhece o vento e o sol e anda pela mão das Estações a seguir e a olhar”. E como teve a sensação que a sua mensagem não tinha sido bem compreendida pelos presentes, apressou-se a acrescentar, “Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos e os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e os ouvidos e com as mãos e com os pés e com o nariz e com a boca”. E então a recetividade dos presentes encheu-o de coragem para desenvolver um pouco mais a filosofia, simples e ao mesmo tempo inteligente, que norteava a sua vida: “O essencial é saber ver, saber ver sem estar a pensar, saber ver quando se vê, e nem pensar quando se vê, nem ver quando se pensa”.
É então que os presentes se apercebem que no fundo da sala, sentado numa mesa de café, tendo diante de si o número 2 da revista Orfeu, uma bica e uma pena imóvel, segurando numa mão um cigarro e noutra uma folha de papel, está um homem frágil de olhar míope.
Todos reconhecem sem dificuldade na personagem da mesa de café, Fernando Pessoa, que parece concentrado apreciando a fala daquele que considera o seu Mestre, pois é o único que, ao recusar o pensamento e ao adoptar o sentir, consegue atingir a paz, a tranquilidade e a serenidade, extraindo da natureza os valores com que alimenta a alma.
Entre duas fumaças, e em jeito de comentário, Pessoa acrescenta, “Temos, todos que vivemos, uma vida que é vivida e outra vida que é pensada, e a única vida que temos é essa que é dividida entre a verdadeira e a errada”, e olhando para os livros espalhados sobre as mesas dos presentes, que serviram de suporte à leitura de algumas poesias, não consegue calar o seu instinto libertário, e remata: “Ai que prazer não cumprir um dever, ter um livro para ler e não o fazer! Ler é maçada, estudar é nada… livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta a distinção entre nada e coisa nenhuma”.
A sessão já estava a terminar, quando aparece esbaforido, num perfeito desassossego e ainda com as suas mangas-de-alpaca colocadas sobre a camisa, o ajudante de guarda-livros, Bernardo Soares. Os afazeres administrativos lá do escritório tinham-no atrasado, e só teve tempo de entregar a Fernando Pessoa, para sua apreciação, um grosso livro encadernado com pele de carneiro, tendo na lombada, escrito a letras douradas, o seu título “Livro do Desassossego”.
E para terminar esta crónica, de um encontro que existindo, nunca se realizou, aqui deixamos para reflexão um excerto do Diário de Bernardo Soares, com que se inicia aquele livro.
“Nasci num tempo em que a maioria dos jovens tinham perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a tinham tido — sem saber porquê. “










2 Comments:

Blogger CelesteMC said...

Excelente reportagem e muito interessante este mergulho na ciência da numerologia.
Gostei de como João Correia deu a conhecer alguns pormenores da vida de Fernando Pessoa e se entregou ao grupo.
A leitura dos poemas enriquecer ainda mais este encontro. Adorei a sessão.

27/3/18 00:17  
Anonymous Anónimo said...

Um belo resumo da sessão, salpicado pela numerologia.
Bem-hajam! Com os meus melhores cumprimentos,

José Correia – Casa Fernando Pessoas

13/4/18 16:24  

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