Memorial de uma visita ao Convento de Mafra
Não tivesse
el-rei D. João, quinto do nome na tabela real, levantado a sua voz para que
claramente o ouvissem, Prometo pela minha palavra real que farei construir um
convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo
de um ano a contar deste dia em que estamos, e nós, o Atrium, não teríamos tido
o privilégio de poder fazer esta visita que hoje dia nove do mês de junho do
ano de dois mil e dezoito da graça do Senhor, nos permitiu conhecer as
entranhas e as histórias deste Convento que só existe porque a rainha que tinha
chegado há mais de dois anos da Áustria não tinha emprenhado apesar das
investidas reais que salvo dificultação canónica ou impedimento fisiológico
duas vezes por semana cumpria vigorosamente o seu dever real e conjugal, e
apesar da paciência e da humildade da rainha que se sacrificava a uma
imobilidade total depois de retirar-se de si o esposo, para que não se perturbassem
no seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de
estímulo e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se
espera de um homem que ainda não tinha feito vinte e dois anos.
Mas a
barriga da rainha lá inchou cumprindo a profecia do virtuoso frade franciscano
de seu nome António de S. José trazido à presença de el-rei por D. Nuno da
Cunha que é o bispo inquisidor, e D. João teve de pagar a sua promessa de
construir o convento possibilitando assim que, em razão de um longínquo
acontecimento histórico concretizado pelo dever carnal de el-rei, consumado na
cama que veio da Holanda por ele mandada fazer de propósito e que por ela pagou
setenta e cinco mil cruzados, coberta por uma armação preciosa, tecida e
bordada de florões e relevos de ouro, isto tudo sem esquecer os bons ofícios do
velho frade franciscano na sua intermediação com Deus, o Atrium possa incluir
na sua já longa lista de actividades esta visita ao Convento de Mafra.
Depois deste
introito histórico, justificativo da realização da visita, inspirado no magnífico
Memorial do Convento do saudoso José Saramago, vamos prosseguir a crónica no
nosso modesto português, o melhor que pudermos e soubermos, sem prejuízo de nos
socorrermos, sempre que se mostrar adequado, da prosa saborosa daquela obra
literária.
A visita foi
guiada pelo Paulo Salcedas, o nosso anfitrião, que nos conduziu com os seus
conhecimentos pelos meandros da história e dos corredores do convento, proporcionando
uma visão mais rica sobre os diversos aspectos da vida deste emblemático
edifício.
Iniciámos o
percurso pelo Núcleo de Arte Sacra, e de seguida deambulámos pelos espaços
conventuais, onde pudemos apreciar a Enfermaria e a Cozinha. Uma referência
especial à etapa seguinte da visita, onde nos foi franqueado o acesso ao espaço
superior da cobertura do convento, fechado ao público em geral, permitindo assim
uma observação muito próxima das torres sineiras e dos mecanismos dos dois carrilhões,
formados por um total de noventa e oito sinos constituindo uns dos maiores carrilhões
históricos do mundo. A vista panorâmica sobre todo o conjunto das diversas alas
do edifício, que ocupa uma área de perto de quatro hectares, rigorosamente
37.790 metros quadrados, é excelente e permite ter uma percepção da grandeza do
convento.
Depois de
alguns longos minutos, o local era bastante atractivo e convidava a paragem,
regressámos ao interior do convento para visitar desta vez o Paço Real, que
ocupa todo o andar nobre do edifício e também os dois Torreões, o do Sul
destinado aos aposentos da rainha e o do Norte ocupado pelo rei. A ligar os
dois aposentos, um longo corredor de 232 metros, o que se traduzia, nas noites
em que el-rei decidia dar infantes à coroa, numa caminhada de 464 metros já que
ele, após cumprir o seu dever real e conjugal, sempre antecedido das necessárias
orações acautelantes, para que o casal real não faleça no momento do acto
carnal, retira-se não passando a noite com a rainha. Segundo rezam as crónicas
da época a causa principal desta retirada era o hábito que a friorenta D. Maria
Ana teria, de se tapar completamente com um cobertor de penas, que tinha
trazido da Áustria, fosse inverno ou fosse verão, e o pobre D. João V não
suportaria o incómodo de sentir-se banhado em suores próprios e alheios, com
uma rainha tapada por cima da cabeça, recozendo cheiros e secreções… De novo aqui
não resistimos em recorrer ao Memorial, um riquíssimo manancial para o
conhecimento e a caracterização desta época, e em particular dos padecimentos
de D. João V.
E eis-nos
chegados ao Coro Alto, o lugar privilegiado com vista para a Basílica, cuja
decoração, toda em pedra lioz da região, é magnífica, e onde el-rei assistia à
missa, simbolicamente posicionado num plano acima do altar, como que a demarcar
a superioridade da coroa sobre os sacerdotes celebrantes do ato litúrgico e
sobre a própria igreja. Do lado oposto à Basílica, o Coro Alto acedia a uma
extensa varanda que se abria para o largo, permitindo que o monarca ali se
deslocasse para se mostrar ao seu bom povo, que se acotovelava em baixo no
terreiro, nos momentos festivos.
Uma derradeira
incursão ao Memorial, para recordar a viagem atribulada, da pedra que constitui
a base da varanda desde Pêro Pinheiro até aqui, e refletir sobre a mensagem que
ela encerra.
Recuemos
então 300 anos e vamos encontrar Baltasar Mateus, de alcunha o Sete-Sóis, a
conduzir uma das duzentas juntas de bois que foram a Pêro Pinheiro buscar uma
pedra muito grande que lá estava, destinada à varanda que ficará sobre o pórtico
da igreja, tão excessiva a tal pedra que foram precisas todas aquelas juntas de
bois e muitos os homens que tinham de ir também e teve de se construir um carro
que haveria de carregar o calhau, uma espécie de nau da Índia com rodas isto
para além vinte carros que levam os petrechos para a condução, a saber cordas e
calabres, cunhas, alavancas, rodas sobressalentes feitas pela medida das
outras, eixos para o caso de se partirem alguns dos primitivos, escoras de
vários tamanhos, martelos, torqueses, chapas de ferro, gadanhas para quando for
preciso cortar o feno dos animais e vão também os mantimentos que os homens
hão-de comer, fora o que puder ser comprado nos lugares, mesmo tendo el-rei
mandado consertar as calçadas o caminho é custoso sempre a subir e a descer
muitas foram as aflições. Por dia não se faziam mais de uns mil e quinhentos
passos o equivalente a duzentas vezes o comprimento da laje, tantas horas de
esforço para tão pouco andar e aquele monstro de pedra a resvalar quando devia
estar parado, imóvel quando deveria mexer-se. Entre Pêro Pinheiro e Mafra
gastaram-se oito dias completos de insuportáveis sofrimentos, e quando entraram
no terreiro foi como se estivessem chegando duma guerra perdida, sujos,
esfarrapados, sem riquezas, toda a gente se admirava com o tamanho desmedido da
pedra, tão grande. Mas Baltasar murmurou olhando a basílica, Tão pequena…
Regressemos
definitivamente à nossa crónica, para assinalar o final da visita, que teve
lugar na Biblioteca, um verdadeiro tesouro, com um acervo de aproximadamente
36.000 volumes com encadernações em couro gravadas a ouro, incluindo uma
segunda edição de “Os Lusíadas” e abrangendo áreas tão diversas como a
medicina, farmácia, história, geografia e viagens, filosofia e teologia,
direito canónico e direito civil, matemática, história natural e literatura.
Merece um especial destaque a riquíssima coleção de incunábulos, obras
impressas até ao ano de 1500.
Uma última
referência que atesta a importância da Biblioteca, é a existência de uma Bula do
Papa Bento XIV, do ano de 1754, na qual era concedida autorização para se
incluírem no seu acervo, os livros proibidos pelo Índex.
O dia já ia
adiantado, e foi com os estômagos vazios e o espírito cheio (a vida está cheia
de contradições…), que nos dirigimos para o restaurante “O Brasão” onde, na
companhia do Paulo Salcedas, recuperámos as energias num ambiente de agradável convívio.
2 Comments:
Iniciativa muito interessante.
Foi uma visita fantástica com um bom guia e com coisas muito interessantes para ver. Parabéns aos organizadores e aos fotógrafos.
Abraços
Berto
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