segunda-feira, junho 18, 2018

Memorial de uma visita ao Convento de Mafra


Não tivesse el-rei D. João, quinto do nome na tabela real, levantado a sua voz para que claramente o ouvissem, Prometo pela minha palavra real que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e nós, o Atrium, não teríamos tido o privilégio de poder fazer esta visita que hoje dia nove do mês de junho do ano de dois mil e dezoito da graça do Senhor, nos permitiu conhecer as entranhas e as histórias deste Convento que só existe porque a rainha que tinha chegado há mais de dois anos da Áustria não tinha emprenhado apesar das investidas reais que salvo dificultação canónica ou impedimento fisiológico duas vezes por semana cumpria vigorosamente o seu dever real e conjugal, e apesar da paciência e da humildade da rainha que se sacrificava a uma imobilidade total depois de retirar-se de si o esposo, para que não se perturbassem no seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda não tinha feito vinte e dois anos.
Mas a barriga da rainha lá inchou cumprindo a profecia do virtuoso frade franciscano de seu nome António de S. José trazido à presença de el-rei por D. Nuno da Cunha que é o bispo inquisidor, e D. João teve de pagar a sua promessa de construir o convento possibilitando assim que, em razão de um longínquo acontecimento histórico concretizado pelo dever carnal de el-rei, consumado na cama que veio da Holanda por ele mandada fazer de propósito e que por ela pagou setenta e cinco mil cruzados, coberta por uma armação preciosa, tecida e bordada de florões e relevos de ouro, isto tudo sem esquecer os bons ofícios do velho frade franciscano na sua intermediação com Deus, o Atrium possa incluir na sua já longa lista de actividades esta visita ao Convento de Mafra.
Depois deste introito histórico, justificativo da realização da visita, inspirado no magnífico Memorial do Convento do saudoso José Saramago, vamos prosseguir a crónica no nosso modesto português, o melhor que pudermos e soubermos, sem prejuízo de nos socorrermos, sempre que se mostrar adequado, da prosa saborosa daquela obra literária.
A visita foi guiada pelo Paulo Salcedas, o nosso anfitrião, que nos conduziu com os seus conhecimentos pelos meandros da história e dos corredores do convento, proporcionando uma visão mais rica sobre os diversos aspectos da vida deste emblemático edifício.  
Iniciámos o percurso pelo Núcleo de Arte Sacra, e de seguida deambulámos pelos espaços conventuais, onde pudemos apreciar a Enfermaria e a Cozinha. Uma referência especial à etapa seguinte da visita, onde nos foi franqueado o acesso ao espaço superior da cobertura do convento, fechado ao público em geral, permitindo assim uma observação muito próxima das torres sineiras e dos mecanismos dos dois carrilhões, formados por um total de noventa e oito sinos constituindo uns dos maiores carrilhões históricos do mundo. A vista panorâmica sobre todo o conjunto das diversas alas do edifício, que ocupa uma área de perto de quatro hectares, rigorosamente 37.790 metros quadrados, é excelente e permite ter uma percepção da grandeza do convento.
Depois de alguns longos minutos, o local era bastante atractivo e convidava a paragem, regressámos ao interior do convento para visitar desta vez o Paço Real, que ocupa todo o andar nobre do edifício e também os dois Torreões, o do Sul destinado aos aposentos da rainha e o do Norte ocupado pelo rei. A ligar os dois aposentos, um longo corredor de 232 metros, o que se traduzia, nas noites em que el-rei decidia dar infantes à coroa, numa caminhada de 464 metros já que ele, após cumprir o seu dever real e conjugal, sempre antecedido das necessárias orações acautelantes, para que o casal real não faleça no momento do acto carnal, retira-se não passando a noite com a rainha. Segundo rezam as crónicas da época a causa principal desta retirada era o hábito que a friorenta D. Maria Ana teria, de se tapar completamente com um cobertor de penas, que tinha trazido da Áustria, fosse inverno ou fosse verão, e o pobre D. João V não suportaria o incómodo de sentir-se banhado em suores próprios e alheios, com uma rainha tapada por cima da cabeça, recozendo cheiros e secreções… De novo aqui não resistimos em recorrer ao Memorial, um riquíssimo manancial para o conhecimento e a caracterização desta época, e em particular dos padecimentos de D. João V. 
E eis-nos chegados ao Coro Alto, o lugar privilegiado com vista para a Basílica, cuja decoração, toda em pedra lioz da região, é magnífica, e onde el-rei assistia à missa, simbolicamente posicionado num plano acima do altar, como que a demarcar a superioridade da coroa sobre os sacerdotes celebrantes do ato litúrgico e sobre a própria igreja. Do lado oposto à Basílica, o Coro Alto acedia a uma extensa varanda que se abria para o largo, permitindo que o monarca ali se deslocasse para se mostrar ao seu bom povo, que se acotovelava em baixo no terreiro, nos momentos festivos.
Uma derradeira incursão ao Memorial, para recordar a viagem atribulada, da pedra que constitui a base da varanda desde Pêro Pinheiro até aqui, e refletir sobre a mensagem que ela encerra.
Recuemos então 300 anos e vamos encontrar Baltasar Mateus, de alcunha o Sete-Sóis, a conduzir uma das duzentas juntas de bois que foram a Pêro Pinheiro buscar uma pedra muito grande que lá estava, destinada à varanda que ficará sobre o pórtico da igreja, tão excessiva a tal pedra que foram precisas todas aquelas juntas de bois e muitos os homens que tinham de ir também e teve de se construir um carro que haveria de carregar o calhau, uma espécie de nau da Índia com rodas isto para além vinte carros que levam os petrechos para a condução, a saber cordas e calabres, cunhas, alavancas, rodas sobressalentes feitas pela medida das outras, eixos para o caso de se partirem alguns dos primitivos, escoras de vários tamanhos, martelos, torqueses, chapas de ferro, gadanhas para quando for preciso cortar o feno dos animais e vão também os mantimentos que os homens hão-de comer, fora o que puder ser comprado nos lugares, mesmo tendo el-rei mandado consertar as calçadas o caminho é custoso sempre a subir e a descer muitas foram as aflições. Por dia não se faziam mais de uns mil e quinhentos passos o equivalente a duzentas vezes o comprimento da laje, tantas horas de esforço para tão pouco andar e aquele monstro de pedra a resvalar quando devia estar parado, imóvel quando deveria mexer-se. Entre Pêro Pinheiro e Mafra gastaram-se oito dias completos de insuportáveis sofrimentos, e quando entraram no terreiro foi como se estivessem chegando duma guerra perdida, sujos, esfarrapados, sem riquezas, toda a gente se admirava com o tamanho desmedido da pedra, tão grande. Mas Baltasar murmurou olhando a basílica, Tão pequena…
Regressemos definitivamente à nossa crónica, para assinalar o final da visita, que teve lugar na Biblioteca, um verdadeiro tesouro, com um acervo de aproximadamente 36.000 volumes com encadernações em couro gravadas a ouro, incluindo uma segunda edição de “Os Lusíadas” e abrangendo áreas tão diversas como a medicina, farmácia, história, geografia e viagens, filosofia e teologia, direito canónico e direito civil, matemática, história natural e literatura. Merece um especial destaque a riquíssima coleção de incunábulos, obras impressas até ao ano de 1500.
Uma última referência que atesta a importância da Biblioteca, é a existência de uma Bula do Papa Bento XIV, do ano de 1754, na qual era concedida autorização para se incluírem no seu acervo, os livros proibidos pelo Índex.
O dia já ia adiantado, e foi com os estômagos vazios e o espírito cheio (a vida está cheia de contradições…), que nos dirigimos para o restaurante “O Brasão” onde, na companhia do Paulo Salcedas, recuperámos as energias num ambiente de agradável convívio.









 























2 Comments:

Blogger CelesteMC said...

Iniciativa muito interessante.

18/6/18 23:16  
Blogger Unknown said...

Foi uma visita fantástica com um bom guia e com coisas muito interessantes para ver. Parabéns aos organizadores e aos fotógrafos.
Abraços
Berto

28/6/18 23:06  

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