O Atrium em visita à cidade de Elmano Sadino e de Luísa Todi, e onde repousa o canto interrompido de Zeca Afonso
Foi naquele já longínquo 24 de Fevereiro de 1987, que uma
multidão de mais de trinta mil pessoas, encheu as ruas de Setúbal numa sentida
despedida do homem, do revolucionário e do autor de canções que marcaram a
nossa geração, e que ficarão para sempre gravadas na história da música popular
portuguesa.
Os versos da sua Balada de Outono reflectem de um modo muito
belo, como só os poetas o sabem fazer, aquele momento de tristeza, vivido por
todos os que estiveram presentes.
Águas do rio correndo / Poentes morrendo / P'ras bandas do
mar / Águas das fontes calai / Ó ribeiras chorai / Que eu não volto a cantar.
Cerca de duzentos anos antes, outro poeta tinha ligado o seu
nome à cidade de Setúbal. Libertino, truculento, irreverente, boémio, talentoso
(o seu temperamento impulsivo e a sua índole contestatária acabaram por levá-lo
às masmorras da Inquisição), considerado o maior representante do arcadismo
lusitano, foi ele Manuel Maria Barbosa du Bocage, o Elmano Sadino, pseudónimo que
adoptou na Nova Arcádia, a academia literária a que pertenceu (pseudónimo construído
com um anagrama do seu primeiro nome, e a referência ao rio que banha Setúbal).
O seu autorretrato ficou espelhado neste inspirado poema.
Magro, de olhos azuis, carão moreno, / Bem servido de pés,
meão na altura, / Triste de facha, o mesmo de figura, / Nariz alto no meio e
não pequeno; / Incapaz de assistir num só terreno, / Mais propenso ao furor do
que à ternura; / Bebendo em níveas mãos, por taça escura, / De zelos infernais
letal veneno; / Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só
momento, / E somente no altar amando os frades, / Eis Bocage, em quem luz algum
talento; / Saíram dele mesmo estas verdades, / Num dia em que se achou mais
pachorrento.
Uma outra figura artística deixou o seu nome inscrito na
história de Setúbal. Aqui nascida em 1753, Luísa Todi, contemporânea de Bocage,
foi uma cantora lírica que alcançou grande sucesso na Europa de então. Londres,
Paris, Berlim, Turim, Varsóvia, Veneza, Viena, São Petersburgo foram algumas
das cidades em que Luísa Todi passou largas temporadas, convivendo de perto com
a aristocracia europeia, como foi o caso de Frederico II da Prússia e Catarina
II, imperatriz da Rússia.
Concluído este introito, no qual pretendemos dar o devido destaque
a estas três figuras da cultura, inseparáveis desta cidade, vamos regressar ao
presente, e à nossa visita do passado dia 12 de Março.
A manhã soalheira já adivinhava um dia bem passado, que se
iniciou no restaurado Convento de Jesus, um belo edifício de estilo gótico, fundado
no reinado de D. João II em 1490, que é considerado como um dos primeiros
exemplares do estilo manuelino. O autor do seu projecto, o arquitecto de origem
francesa, Diogo Boitaca (1460 – 1528), viria a ser escolhido, por D. Manuel I em
1502, para executar os planos da construção do Mosteiro dos Jerónimos, onde pôde
desenvolver e consolidar o estilo manuelino. Agraciado pelo monarca com o
título de “Mestre das Obras do Reino”, colaboraria ainda nos projectos da Torre
de Belém e do Mosteiro da Batalha.
O interior da igreja gótica é magnífico, destacando-se pela
sua originalidade as belas colunas torsas, executadas em brecha, uma rocha
sedimentar, que se encontra apenas na Serra da Arrábida.
A fundação do Convento é atribuída a Justa Rodrigues Pereira,
que na sua mocidade manteve uma relação amorosa com um certo D. João Manuel, frade carmelita e bispo da Guarda,
de quem teve dois filhos. Pensa-se que, arrependida da sua conduta, Justa
Rodrigues renunciou ao amor pelo frade carmelita, adquirindo enorme virtude e
compostura moral, sendo admitida no paço real como ama-de-leite
do então Infante D. Manuel, futuro rei D. Manuel I.
A visita prosseguiu no convento, onde se encontra instalado
o Museu de Setúbal, cujas obras de recuperação ainda não se encontram
concluídas, onde pudemos apreciar a arquitectura do edifício bem como as coleções
relacionadas com arte, história e arqueologia, sobressaindo as coleções de
pintura, sobretudo a do século XVI, escultura sacra, ourivesaria, azulejaria e
outras artes decorativas.
Ainda antes do almoço tivemos a oportunidade de visitar mais
dois locais do nosso périplo setubalense, o Mercado do Livramento e a Galeria
Municipal do Banco de Portugal.
O Mercado do Livramento, inaugurado em 1930, considerado em
2015 um dos melhores mercados de peixe do mundo, pela publicação
norte-americana USA Today, constitui um local agradável não só pela enorme
variedade de produtos, especialmente de peixe fresco, mas também pelo seu bonito
edifício com colunas em ferro fundido e pelos enormes painéis de azulejos, das
décadas de 30 e 40 que retratam parte da história da cidade através de cenas da
vida quotidiana, num total de cerca de 5700 azulejos.
A Galeria Municipal do Banco de Portugal, encontra-se
instalada num vetusto edifício com influências de Arte Nova, da autoria de
Arnaldo Adães Bermudes, que albergou a sede daquela instituição financeira
entre 1917 e 1994. Ali pudemos apreciar o conjunto das 14 pinturas do retábulo
da capela-mor da Igreja de Jesus, consideradas uma obra-prima de um dos
maiores pintores portugueses do século XVI, Jorge Afonso, conjunto esse que já
foi apresentado em várias cidades europeias, nomeadamente em Sevilha, na Expo
92.
Com o nosso apetite estimulado pela brisa marítima da frente
ribeirinha de Setúbal, e também pela dose de cultura já acumulada, foi com
alguma voracidade que nos dirigimos para o restaurante Restinguinha, situado no
caminho para a Serra da Arrábida, onde nos deliciámos com uma refeição variada
de peixe grelhado que incluiu o inevitável choco frito.
Já devidamente apetrechados, e depois de um breve descanso,
iniciámos a segunda parte do nosso programa com a visita ao Museu do Trabalho
Michel Giacometti.
Este museu instalado numa antiga fábrica de conserva de
peixe, a M. Perienes Lda. criada em 1919, nasceu para albergar a coleção
etnográfica, reunida em 1975 por alunos do Serviço Cívico Estudantil, no âmbito
do plano de Trabalho e Cultura, sob a supervisão de Michel Giacometti. O actual
museu, que em homenagem ao seu fundador passou a denominar-se Museu do Trabalho
Michel Giacometti, abriu as portas ao público a 18 de maio de 1995, acolhendo
três exposições permanentes: “A Indústria Conserveira (Da lota à lata) ”,
“Mundo Rural – Coleção Etnográfica Michel Giacometti e a Génese do Museu”,
“Mercearia Liberdade – Um património a salvaguardar”.
O espaço da exposição “Da lota à lata” transportou-nos aos
tempos de grande prosperidade para a indústria conserveira (particularmente aqui
em Setúbal, onde em 1930 chegaram a laborar 130 fábricas, hoje não há uma
única), mas de grande dureza nas condições de trabalho para os empregados, na sua
grande maioria mulheres, que nas fábricas, se ocupavam de quase todas as
tarefas.
Tudo começava com o moço da bicicleta, que ia pelas ruas de
Setúbal gritando a avisar que havia peixe, forma de chamar as mulheres para a
fábrica, para se entregarem às diversas tarefas do processo. Elas salmonavam e
lavavam o peixe, faziam o engrelhamento, descabeçamento, enlatavam,
encaixotavam. Quando havia peixe suficiente, o trabalho estendia-se por vezes
até 16 ou 17 horas por dia, de segunda-feira a domingo.
Aos homens eram destinadas, normalmente, outras tarefas,
nomeadamente a feitura e o fecho das latas. Eram os soldadores, que constituíam
na altura das classes mais politizadas e reivindicativas entre o conjunto do
operariado do sector.
Com a preciosa colaboração de dois elementos do grupo, a
Maria de Carmo e o José Cardim, assistimos à recreação viva de alguns dos
momentos desta dura labuta fabril, sendo aqui de destacar o esforçado empenho
do nosso amigo José Cardim, que nos fez crer que se tinha perdido uma vocação inata
para estas tarefas “da lota à lata”…
O último núcleo que visitámos, a “Mercearia Liberdade”, é uma
interessante reconstituição de uma mercearia típica, que esteve em
funcionamento durante cem anos na Av. Da Liberdade, em Lisboa, e que foi integralmente
reconstruída no interior do Museu, com o balcão, as balanças, uma brilhante
caixa registadora, os medidores de líquidos, os armários, os escritórios e os
produtos, desde os bacalhaus, os azeites, os vinhos e claro, muitas latas de
conservas.
Esta possibilidade de viver o funcionamento e a organização
de uma antiga mercearia, ver os pesos, as medidas, a forma como se cortavam e
embalavam os produtos, ao mesmo tempo que preserva a memória de um passado
ainda recente, vem acrescentar ao museu um espaço de aprendizagem, sobretudo
para os mais jovens.
O périplo estava a chegar ao fim, o último objectivo era a
Casa da Cultura. Instalada num magnífico e bem recuperado edifício, ela
constitui um polo que pretende dinamizar a atividade artística desenvolvida no
concelho, nas suas diversas valências, ao serviço do movimento associativo e da
população. Está organizada nos seguintes núcleos: A Escola da Música
(Dinamizada pela Sociedade Musical Capricho Setubalense), o Centro de
Documentação, Estudo e Promoção da Canção Popular Portuguesa (Desenvolvido pela
Associação José Afonso), o Espaço das Artes (Conduzido pela Artiset –
Associação de Artistas Plásticos de Setúbal), o Gabinete da Juventude e o
Centro de Documentação Local (Dinamizado pelo Centro de Estudos Bocageanos).
O dia já ia longo, o sol já desaparecia vagarosamente por
detrás da misteriosa Serra da Arrábida (a "Serra-Mãe", no dizer do poeta
Sebastião da Gama), onde o monge eremita e poeta Frei Agostinho da Cruz
terminou os seus dias, escrevendo sobre ela este poema, com que encerramos esta
crónica de um dia enriquecedor na cidade de Elmano Sadino.
Alta Serra deserta, donde vejo / As águas do Oceano de uma banda, / E de outra, já salgadas, as do Tejo. / Aquela saudade, que me manda / Lágrimas derramar em toda a parte, / Que fará nesta, saudosa e branda? / Daqui mais saudoso o Sol se parte; / Daqui muito mais claro, mais dourado, / Pelos montes, nascendo, se reparte...
Alta Serra deserta, donde vejo / As águas do Oceano de uma banda, / E de outra, já salgadas, as do Tejo. / Aquela saudade, que me manda / Lágrimas derramar em toda a parte, / Que fará nesta, saudosa e branda? / Daqui mais saudoso o Sol se parte; / Daqui muito mais claro, mais dourado, / Pelos montes, nascendo, se reparte...
2 Comments:
Boa visita e boa reportagem. MCMC
Muito bom, boa descrição, foi assim que a visita decorreu. Realço o vosso trabalho de pesquisa.
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