terça-feira, março 08, 2011

Catorze anos e alguns meses depois o Atrium revisitou Foz Côa e as suas gravuras rupestres

Foi em Novembro de 1996 que rumámos pela primeira vez até Foz Côa para conhecer as suas gravuras. Na altura visitámos o único núcleo aberto ao público, o de Penascosa, e o improvisado e incompleto museu que tinha sido provisoriamente instalado na então Vila Nova de Foz Côa (só mais tarde, em Julho de 1997, a vila seria elevada à categoria de cidade). A polémica sobre a decisão de interromper a construção da barragem estava no seu auge.
A população encontrava-se dividida, de um lado os defensores da construção e do outro os defensores da preservação das gravuras e da suspensão das obras da barragem. Estes desenvolviam múltiplas iniciativas cívicas, nas quais a acção dos arqueólogos era secundada pelos estudantes que se organizaram em diversas associações para a defesa das gravuras, e serão os próprios estudantes da Escola Secundária de Vila Nova de Foz Côa quem lança o slogan que se vai transformar no emblema desta luta: "As gravuras não sabem nadar".
O então Presidente da República, Mário Soares, visita as gravuras em Fevereiro 95, pronunciando-se a favor da sua preservação. A organização de um grande acampamento de jovens de todo o país em Vila Nova Foz Côa, em Abril 95, culmina este movimento juvenil a favor da arte do Côa. Organizam-se debates públicos sobre o tema em Lisboa e em Braga, multiplicaram-se os artigos de opinião de pessoas oriundas dos mais variados horizontes, cujos autores defendem, na maioria, a preservação das gravuras.
Perante esta resistência por parte da opinião pública, o Governo de Aníbal Cavaco Silva hesita e acaba por não tomar nenhuma decisão antes das eleições de Outubro 95. E é o recém-eleito primeiro-ministro, António Guterres, que anuncia a suspensão das obras da barragem logo no primeiro dia de debate do programa do Governo no Parlamento. No final de 95, o projecto de barragem é definitivamente suspenso.
Hoje já não restam quaisquer dúvidas sobre a extraordinária importância das gravuras e da sua contribuição para o conhecimento mais correcto e mais completo dos nossos antepassados, dos seus hábitos, da sua vida e sobretudo das suas primeiras manifestações artísticas. Faltará uma visão global e uma acção coordenada, capaz de potenciar essa importância e de a transformar num motor para o arranque do desenvolvimento económico e social de toda esta região. É um esforço que se impõe sob pena de se perder, a médio ou a longo prazo, tudo o que de bom já foi feito.
A existência de diversos núcleos de arte rupestre ao ar livre, numa extensão de 17 km abrangendo o Vale do Côa, torna-o um lugar único em todo o mundo, sendo já considerado o mais importante sítio com arte rupestre paleolítica de ar livre. Diferentes homens e mulheres deixaram a sua marca nestas rochas, desde há cerca de 25.000 anos até ao nosso tempo.
Em Agosto de 1996, é criado o Parque Arqueológico do Vale do Côa que tem como objectivos gerir, proteger e colocar disponível ao público a arte rupestre do Vale do Côa. Em 1997 esta arte foi classificada como Monumento Nacional e em 1998 Património da Humanidade da UNESCO, de acordo com os seguintes critérios:
“A arte rupestre do paleolítico superior do Vale do Côa é uma ilustração excepcional do desenvolvimento repentino do génio criador, na alvorada do desenvolvimento cultural humano;
A arte rupestre do Vale do Côa demonstra, de forma excepcional, a vida social, económica e espiritual do primeiro antepassado da humanidade”
.
O principal objectivo deste nosso regresso a Foz Côa foi a visita ao novo Museu de Arte e Arqueologia, inaugurado em Julho de 2010, quinze anos depois da decisão de não se construir a barragem. O Museu, da autoria dos arquitectos Tiago Pimentel e Camilo Rebelo, é um excelente edifício que se desenvolve de uma forma triangular monolítica, em resultado da confluência dos vales. Os materiais com que é construído evocam as pedreiras existentes na região, através da matéria do betão e da textura e cor da pedra local.
Foi uma interessante viagem pelo tempo que nos permitiu um encontro com o passado, com a vida dos nossos afastados antepassados, destacando as suas manifestações artísticas, entendidas hoje na sua função ritual e mágica, segundo a qual, o homem representava os animais com que se alimentava e de que dependia, com o objectivo de propiciar a caça e a reprodução dos próprios animais. Daí os inúmeros auroques, cabras e cavalos presentes nas gravuras.
Ainda no sábado à noite, alguns viajantes mais resistentes, deliciaram-se com um espectáculo musical no Centro Cultural de Foz Côa, com o grupo de música popular Fiarresgas.
No domingo ainda tivemos oportunidade de uma proveitosa (atendendo ao número de garrafas que no regresso atravancaram o porta-bagagens do autocarro…) visita guiada à Cooperativa de Viticultores e Olivicultores de Freixo de Numão, um exemplo de que investir em qualidade vale sempre a pena.
Como pano de fundo deste agradável fim-de-semana, a presença exuberante das amendoeiras em flor, que nos acompanhou durante quase toda a viagem e que quase nos fez esquecer, ainda que temporariamente, as questões da dívida soberana, das agências de rating, do preço dos combustíveis, dos números do desemprego, do Presidente que vai tomar posse dentro de dias…
O milagre que, segundo a lenda, restituiu as forças e o ânimo à bela princesa Gilda, quando do terraço do castelo teve a visão das flores brancas que se estendiam sob o seu olhar, por breves momentos voltou-se a repetir!…