segunda-feira, março 03, 2008

FADOS



E foi assim na passada 6ª feira, entre bacalhau e porco com ameixas ouviu-se o fado n "O cantinho da Amizade".

A poesia de Francisco José Viegas

Meia-Noite de Buenos Aires

Os bailarinos de tango vieram de Mendonza e de Santa Rosa
cada um de sua cidade. Aprenderam o tango entre lixo
e ventanias; há sempre aquele perfume nas ruas
de Buenos Aires, uma luz perigosa que nasce entre Corrientes e Dorrego,
e não desaparece com a chuva. Aprenderam o tango
nas manhãs de domingo, muito cedo, quando os turistas
perguntam pela Plaza de Mayo e seguem encostados às paredes
das velhas casas do bairro. Bandonéon e fuga, aço puro,
contrabaixo, piano forte, aguarelas, dança no meio do fogo,
escondida da luz: eles aprendem com as memórias,
com os falhados, os mortos, os músicos que atravessaram
os átrios, os pr´dios cobertos de pó, as praças enegrecidas
pelos anos e pela literatura. São bailarinos de tangos;
tu compreendes a música mas só eles entendem a vingança
de cada passo, o silêncio que se faz em seu redor, a meia noite
de Buenos Aires, aquele olhar que não é já um olhar
mas uma ameaço, uma lãmina que aparece em cada mão
para dar brilho às histórias e ao seu passado. É só o tango.


A MONTANHA DE EL MARTIAL

Subo pela montanha. Ao fim de algumas horas
sento-me numa rocha mais alta para ver
a claridade do vale: pontes que atravessam ravinas,
animais solitários que procuram um caminho,
sinais perdidos nas penumbra.

Daqui vejo como a poeia
foi desaparecendo do mundo. Ou como
o seu sentido mudou - o poeta
devia interpretar as meteorologias, prever
as tempestades, não dar voz às coisas
do mundo nem às pequenas glórias.
Se houvesse uma obrigação digna e perfeita
seria esta: subir a montanha,
esgotar as suas forças, contemplar o vale.

Neva em Ushuaia

Neva em Ushuaia por alguns instantes. São os primeiros
sinais do Outono, vindos de El Martial ao fim da tarde.
Os poetas locais compõem os versos adequados àcircunstância
- o Diário del fin del Mundo publicará depois sonetos, odes,
vilancetes e até uma milonga irregular sobre a brancura
que emudece diante do canal. Para isso serve a poesia,
que é mais útil nas pequenas cidades: ilustra os museus,os jardins,
estátuas de almirantes, exploradores, viajantes da Antártida,
almocreves heróicos que atravessaram o estreito de Magalhães
para chegarem a Ushuaia. Neva em Ushuaia e comovo-me
nas ruas molhadas diante das livrarias e das lojas de tabacos,
e digo o nome dos meus filhos, Maria, Manuel, Francisco,
subo as escadarias, vejo a neve diante dos museus, das portas,
vejo os caminhantes que se abrigam nos cafés e olham
com surpresa a primeira neve do Outono. Mudo os meus versos
e empobreço-os, tocados pela primeira neve, a primeira neve
do Outono que cai sobre o fim do mundo, cai sobre a baía,
cai sobre o glaciar, cai sobre a mudez mais fria da pedra,
sobre as montanhas escuras, e nada resta do primeiro verso,
nada fica da primeira palavra, como uma ventania do sul.