domingo, maio 31, 2020

25 Abril 74 - as memórias da São Barradas


Tinha 19 anos e estava em Portimão, para onde a minha família tinha ido viver três anos antes, terra de operários e pescadores, onde a consciência política era grande e desde o assassinato do Ribeiro Santos quase dois anos antes, que a Pide estava à porta do liceu que a minha irmã frequentava pois “alguém” que já vão perceber quem foi, tinha distribuído panfletos em todos os intervalos.
Frequentava o 3º ano de Economia mas claro que às aulas preferi sempre as manifestações contra a Guerra Colonial a fugir da polícia, sem experiência nenhuma mas cheia de sorte, as RGA, as bancas de livros de que na sua maioria nunca tinha ouvido falar... Era ainda só estudante, no ISE onde aliás conheci o Zé Maria e a Hirondina, sentados numa escada junto com o piquete de greve a uma frequência de Matemática, no ano anterior, a que eu me juntei, sem que nem eles nem eu ali estivéssemos por direito, mas sim por acaso...
Económicas, como lhe chamávamos, tinha fechado após a entrada brutal da polícia de choque em Março de 1974 e tive ordens não discutíveis de sair de Lisboa onde só estava a fazer despesa, já que não havia aulas…era ainda só estudante e não conhecia o mundo do trabalho e por isso obedeci àquelas ordens familiares. Tinha por isso muito, mas mesmo muito contrariada saído de Lisboa havia pouquíssimos dias.
Como se fosse ontem, lembro-me que na noite mais com sol que nós tivemos até hoje, de rádio ligado no quarto com a minha irmã, fumávamos à janela longe do quarto da minha avó, condição absoluta para a ordem de fumar recebida dos pais, um ano antes, que a tua avó não saiba!
A canção do festival outra vez, bolas que chatice, e gozávamos desentoando em coro: “…o ficarmos sóoos…” rindo até às lágrimas e engasgando o fumo do cigarro apressado, cuspido o fumo na janela.
Mas essas lágrimas foram prenúncio de outras grandes e conjuntas que horas depois nos reuniram a todos no quarto, onde apesar do cheiro do tabaco, a minha avó também entrou e nem a tal se referiu!
Grândola vila morena…não é possível, os gajos vão presos! No momento em que os meus pais entram e anunciam: CONSEGUIRAM!
Momentos depois não há TV, não há telefone, vou-me vestir e vou a casa do Catarino, saber se ele sabe o que se passa, anunciou o meu pai!
Era verdade! O domínio odiado tinha acabado de ser derrotado, um longo caminho estrelado se anunciava para lá da Foia! E nós ali em pijama e a chorar todos abraçados, e eu cheia de raiva de não ter ficado em Lisboa…
Não me lembro quando voltámos a ter telefone e a rádio desapareceu também nessa madrugada. O Algarve, desde sempre desde os reis, que eram de Portugal e dos Algarves e de outras coisas depois, estava separado do país, isolado sem comunicações. Só a esperança nos fez unir a todos num movimento que não sabíamos como urdiu e conseguiu derrubar o odiado regime.
Se o teu avô fosse vivo! Pois, se ele fosse vivo, não gostaria de ver como nós não gostámos, naquela tarde de Maio que se seguiu juntando num mar de gente gigantesco, em Portimão, no primeiro 1º de Maio, a coordenadora da Mocidade a gritar LIBERDADE junto com todos os que gritavam na romagem que se seguiu à campa do Manuel Teixeira Gomes para lhe anunciar a novidade. Todos a viram e todos se interrogaram o que estaria ela ali a fazer mas nenhum lhe fez mal nem a denunciou.
As dúvidas começaram a aparecer depois de um entusiasmo infantil que nos levou à rua a sermos todos irmãos, camaradas, companheiros.
Será que acabam com a guerra das colónias? Será que os presos são libertados? Será que conseguem apanhar os PIDES?
Será? Será?
Dentro do peito uma estrela enorme começou a engrossar e queimou as gargantas de tanta luz. Não conseguíamos falar!
O rio do contentamento começou a crescer e transbordou nos olhos de todos nós num caudal límpido de esperança num Portugal livre e culto e justo e grande e capaz!
Passaram mais de quarenta e seis anos sobre aqueles dias coloridos e tanta pergunta sem resposta se mantém!
Quando é que o povo português canta a Grândola de vez???
Maria Barradas, Sines, Maio de 2020