segunda-feira, julho 20, 2015

(3) Pelas terras do Mundo Helénico ao encontro dos deuses e dos homens

Parte III – Das profecias do oráculo de Delfos aos mosteiros suspensos da Meteora.   


E entrámos no quinto dia de viagem. A jornada de hoje iria levar-nos para fora do Peloponeso e culminaria em Delfos, já na Grécia Central, num percurso de cerca de 250 km.
Cedo nos pusemos ao caminho, na direcção do litoral do Mar Jónico, passando por Pyrgos, Lechaina, Lápas e Pátra, a terceira cidade da Grécia e o seu segundo porto. Ao longo da costa pudemos ver grandes areais, que faziam adivinhar boas praias com águas límpidas e quentes, mas à medida que nos aproximamos de Pátra, as instalações portuárias vão transformando a paisagem.
Numa curva da estrada aparece-nos então a silhueta elegante da Ponte Rio-Antirio, oficialmente Ponte Charilaos Trikoupis, em homenagem a este primeiro-ministro grego que em 1880, foi o primeiro a lançar a ideia da sua construção. Com um comprimento total de 2880m, foi inaugurada na noite do dia 7 de Agosto de 2004, tendo sido utilizada logo no dia seguinte, para a passagem da chama Olímpica no seu trajecto para Atenas, aquando dos Jogos da XXVIII Olimpíada, ali realizados.
Fizemos uma primeira paragem após passar a ponte, e pudemos fazer uma visita rápida a um pequeno museu aí existente, onde estão documentados os diversos aspectos relacionados com o projecto e a construção desta obra.
Depois das inevitáveis fotos, tiradas numa plataforma estrategicamente colocada no enfiamento do tabuleiro da ponte, voltámos à estrada e só parámos já em Delfos, para o almoço, num restaurante com uma magnífica vista sobre a costa e sobre uma imensa planície de oliveiras (cerca de um milhão e meio), que é conhecida por aqui como “mar de oliveiras”: recordemos que a Grécia é o terceiro maior produtor mundial de azeite, a seguir à Espanha e à Itália (Portugal posiciona-se no oitavo lugar).
A seguir ao almoço, fomos até ao nosso principal objectivo do dia de hoje, o Museu Arqueológico de Delfos. Este museu, que é um dos mais importantes de toda a Grécia, possui um espólio que documenta a história do Santuário de Delfos, onde existiu o mais famoso oráculo da Grécia antiga.
A importância do Oráculo de Delfos, situado no Templo de Apolo (o deus da luz e da adivinhação), justifica que dediquemos algumas linhas sobre a sua história, o seu funcionamento e a sua influência no mundo helénico.
Foi fundado por volta de 750 a.C., e durante mais de 15 séculos, viajantes vindos dos mais diversos lugares do mundo helénico, consultavam as Pitonisas (sacerdotisas do deus Apolo, cuja designação deriva do nome mitológico de uma serpente monstruosa - a Píton – que dominava esta região e que Apolo matou num feroz combate), para obterem respostas e conselhos para os seus problemas: os políticos sobre as alianças a fazer ou a desfazer, os generais sobre a guerra ou a paz, os comerciantes sobre os seus negócios, os cidadãos sobre a saúde e as relações familiares.
As recomendações do Oráculo surgem também com grande relevo na Mitologia Grega. Quando Orestes lhe perguntou se deveria vingar a morte de seu pai, assassinado por sua mãe, o Oráculo encorajou-o. Édipo, avisado pelo Oráculo de que mataria o pai e se casaria com a mãe, esforçou-se para evitar esse destino, mas falhou completamente.
Ao longo dos séculos, o Oráculo tornou-se assim um dos lugares sagrados mais venerados pelos gregos, e as suas previsões e predições tiveram enorme repercussão na vida política e social de então, constituindo um importante centro de poder, não só pela riqueza da informação recolhida nas perguntas feitas, como pela orientação das respostas que, como veremos adiante, eram “interpretadas” pelos sacerdotes que “assessoravam” a Pitonisa.
Vejamos como se desenrolavam então as consultas: O Oráculo funcionava numa câmara situada no interior do Templo de Apolo denominada ádito (área proibida), onde a Pitonisa se sentava num tripé, colocado sobre uma fenda existente no chão, por onde subiam estranhos vapores. Em resposta às questões que lhe eram colocadas, e sob o efeito do “fumo sagrado”, ela entrava em transe - ficava completamente pedrada - e começava a dizer coisas sem nexo, palavras cifradas e sons estranhos, aparentemente sem nenhum sentido, metodicamente anotados pelos sacerdotes que a rodeavam.
Estes “descodificavam” então a informação da Pitonisa (em função dos seus interesses, e normalmente de forma ambígua) e davam então por escrito a resposta, por vezes em verso, ao consulente (Esta linguagem confusa e enigmática, ficou conhecida como "sibilina", por ter sido associada a uma das Pitonisas mais famosas, de nome Sibila).
Estudos científicos recentes, efectuados nos anos noventa, mostram que a descrição dos fumos saídos da fenda existente debaixo da Pitonisa era, de facto, credível. Esses estudos identificaram duas falhas geológicas que se cruzavam precisamente sob o local do oráculo, e concluíram que ricas camadas petroquímicas nas formações calcárias da região produziam, provavelmente, etileno, gás que leva a um estado de transe, e que seria expelido através das fissuras criadas pelas falhas.
Como o etileno tem um aroma agradável, a presença deste gás parece apoiar as descrições clássicas, como a de Plutarco, que aludia a um gás cujo cheiro se assemelhava ao de um sofisticado perfume.
A Pitonisa era de facto um médium, que era sujeita a uma preparação rígida, que incluía três dias em jejum, bebendo apenas água e mascando folhas de louro, com o objectivo de facilitar a sua entrada em transe.
Deixemos, por agora, a Pitonisa e as suas adivinhações, e voltemos ao Museu Arqueológico de Delfos.
O primeiro museu de Delfos foi fundado em 1903, para receber o produto das escavações iniciadas por arqueólogos franceses em 1892, e ao longo do tempo sofreu várias ampliações, a última das quais em 1999.

Nele estão expostos elementos arquitectónicos, estatuária e objectos doados ao santuário, provenientes sobretudo da época em que o templo alcançou o seu apogeu, reflectindo assim as actividades religiosas, políticas e artísticas, desde o início do séc. VIII a.C. até ao seu declínio, já na época romana.

A colecção, cuja importância é apenas igualada pela Acrópole de Atenas, está organizada cronologicamente de modo a possibilitar uma compreensão da evolução histórica do local, bem como da sua influência na sociedade grega.
Sem pretender ser exaustivos, recordaremos apenas algumas das peças que mais nos impressionaram. Em primeiro lugar o célebre Auriga de Delfos, a escultura em tamanho natural, representando um condutor de quadrigas, uma das raras representações gregas em bronze, cuja beleza e perfeição nos prenderam os sentidos. Destacaremos também a colossal Esfinge, oferta dos cidadãos abastados de Náxos, uma das estátuas mais impressionantes do museu, os fragmentos de um Touro Votivo coberto de prata, os Gémeos de Argos, o friso do Tesouro de Sífnio, representando heróis homéricos lutando contra gigantes, as Dançarinas de Delfos, representando três raparigas a dançar em volta de uma coluna.
A tarde já ia adiantada quando voltámos ao bus, já rendidos à magia deste local, o centro da terra ou o umbigo do mundo, onde as duas águias, lançadas por Zeus de dois cantos opostos do mundo, cruzaram os seus voos.
A viagem atá ao hotel Amalia foi curta, e antes de jantar ainda houve tempo para alguns luso-viajantes se descontraírem, dando umas braçadas na agradável piscina do hotel. Após o jantar enquanto alguns se defrontavam na mesa de pano verde, em renhidos kings, outros foram em passeio até Delfos saboreando o fresco da noite e, ao mesmo tempo, aproveitando as lojas abertas para efectuarem complexas surtidas, que deixaram alguns pobres comerciantes à beira de um ataque de nervos…
O recolher aos quartos foi relativamente cedo. O dia de amanhã iria ser longo, começando com a visita matinal às ruínas do Santuário, e culminando com os 300 km que teríamos de percorrer até Meteora.
Perto da meia-noite, com o hotel mergulhado já no silêncio absoluto, uma figura feminina surge no átrio, passa pela recepção, dando as boas-noites ao funcionário que lhe responde meio ensonado, e dirige-se para a saída num passo decidido.
Rapidamente vence a distância que separa o hotel do Recinto Sagrado e estaca na Ágora, que assinala a entrada principal para o Caminho Sagrado. Com uma expressão de contida satisfação olha em redor e distingue, iluminado pelo luar, o complexo do Santuário de Apolo, como que renascido das ruínas, em toda a sua grandeza, tal como existiu há 500 anos atrás.
O seu encantamento foi interrompido pela chegada de um sacerdote, que de archote na mão lhe pediu que o acompanhasse. Aristeia sem hesitar segue-o em silêncio ao longo do Caminho Sagrado, enquanto pelo seu espírito iam desfilando os últimos acontecimentos: Por iniciativa sua, e aproveitando a paragem em Delfos, tinha decidido consultar o Oráculo para tirar a limpo os desígnios dos luso-viajantes. Para tal pediu o consentimento e a ajuda de Zeus, que não se fez rogado e determinou mesmo que a Pitonisa e os sacerdotes, seus assessores, fizessem as horas extraordinárias necessárias (que seriam remuneradas de acordo com a tabela em vigor), de modo a possibilitar a consulta em horário noturno, e com dispensa dos preparativos habituais (pagamento do pelanos e sacrifício de um animal no altar).
Chegados ao Templo de Apolo, em cujo frontão, iluminado por diversos archotes, brilhavam as esculturas de Apolo ladeado por sua mãe Leto e pela sua irmã Ártemis, foram recebidos por um segundo sacerdote mais velho que os esperava, e os três introduziram-se no edifício, descendo até ao ádito, onde a Pitonisa já se encontrava instalada no tripé, aspirando os fumos sagrados, dando sinais de já estar a entrar em transe oracular.
Aristeia colocou a pergunta ao velho sacerdote, e este transmitiu-a à Pitonisa que reagiu da forma habitual, com sons guturais e palavras sem nexo, após o que caiu em profunda prostração. Então o sacerdote entregou-lhe por escrito a interpretação da resposta da Pitonisa, e sem mais delongas abandonaram o ádito.
No caminho de regresso ao hotel, após ter lido a predição da Pitonisa, o rosto de Aristeia ia iluminado com uma indisfarçável expressão de alegria.
O dia sexto amanheceu com um sol glorioso, que fazia adivinhar uma acalorada peregrinação pelas ruínas (de novo ruínas…) do Recinto Sagrado.  
Chegámos cedo ao santuário e após uma explicação sobre os principais pontos de interesse, dada pela Aristeia, que se mostrou com uma visível boa disposição, percorremos todo o complexo, começando pelo Caminho Sagrado, ladeado pelas diversas construções onde eram depositadas as oferendas, das quais destacamos a Câmaras dos Tesouros Sífinio e de Atenas, esta última construída após a batalha da Maratona e reconstruída em 1906. Destacaremos também o Teatro, construído há mais de 2500 anos e com 5000 lugares sentados, e o Estádio onde se realizavam de 4 em 4 anos as provas de atletismo dos Jogos Píticos, que comemoravam a já referida vitória de Apolo sobre a serpente Píton. Por último, o mais importante edifício do santuário, o Templo de Apolo, que albergava o nosso já bem conhecido Oráculo de Delfos.
Ao deixar o Monte Parnaso e o seu Santuário de Apolo, a sensação era de que, se não estávamos de facto no umbigo do Mundo, por certo andámos lá por perto, tal é a magia que envolve todo este local.
O nosso segundo objectivo do dia foi o Mosteiro de Osios Loukás, um dos mais importantes edifícios da Grécia medieval, que foi mandado construir pelo imperador Romanós em 1011. A igreja principal, de estilo octogonal, bem como os mosaicos do seu interior, reflectem bem a arquitectura e a arte bizantinas.
Este templo ficou ligado à Guerra da Independência da nação grega, pois foi aqui que, em 1821, o bispo Isaías declarou o seu apoio aos que lutavam pela liberdade da Grécia.
Os seus mosaicos são admiráveis, destacando-se pela sua qualidade e estado de conservação, o Lava-Pés dos Apóstolos.
Osios Loukás, que significa São Lucas, nasceu em Egina em 906 e aqui se fixou com alguns discípulos, fazendo profecias e curas. Morreu com 47 anos e o seu túmulo encontra-se na cripta do mosteiro (Osios, na igreja ortodoxa tem o significado de Santo que faleceu de morte natural, e não por qualquer processo violento ou martírio).
Terminada a visita, o nosso estômago já estava protestando, e antes que nos tornássemos Osios (?), impunha-se um almoço, antes de vencermos os 300 km que nos separavam de Meteora, onde chegámos pelas 19h30 a mais um simpático hotel Amalia. Como ainda havia tempo antes de jantar vários luso-viajantes retemperaram as suas forças na piscina.
A noite chegou, desta vez sem nenhum acontecimento estranho, e todos puderam gozar de um sono reparador, sob a protecção definitiva dos deuses do Olimpo (até o funcionário da recepção teve uma noite santa, os vultos noturnos não voltaram a aparecer…).
E o dia sete chegou, e com ele materializou-se a visita a um dos locais mais interessantes da Grécia Central, pela história que encerra e também pelo espantoso fenómeno geológico que representa. 
A explicação científica mais credível, sustenta que a formação das “rochas suspensas” se deve à existência neste local, de uma grande lagoa, a lagoa de Tesalia, que por efeito de movimentos geológicos, as suas águas encontraram saída para o mar Egeu. O maciço que resultou do escoamento das águas, através da acção erosiva do vento e das chuvas, ao longo de milhões de anos, dividiu-se em pedras mais pequenas e em enormes rochas compactas, cuja altura atingia por vezes os 400 metros.
A ocupação humana começa no ano de 985, quando o eremita Barnabé se instala numa das grutas existentes nas torres naturais de arenito. Em meados do séc. XIV é construída a primeira igreja nas “rochas suspensas”, em 1382 é construído o mosteiro de Megálo Metéoro (o Grande Metéoro) e nos anos seguintes são fundados mais 23. No séc. XIX quase todos eles estão em ruínas, e hoje em dia estão recuperados, e com vida monástica, 6 deles (4 de monges e 2 de freiras).
Tivemos a oportunidade de visitar dois de eles, o Grande Metéoro, de monges, e o de San Esteban, de freiras. Em ambos pudemos apreciar o ambiente de recolhimento e de culto efectivo que neles se vive, com os ritos próprios da igreja ortodoxa (aliás ritos talvez um pouco fundamentalistas, para algumas almas mais liberais, que implicavam o uso de uns inestéticos panos a fazer de saias, pelas visitantes que usavam calças e também a proibição absoluta de tirar qualquer foto dentro das igrejas, o que originou até uma reacção de uma violência exagerada – digna de um mau filme de artes marciais - por parte de uma monja, ao arrancar das mãos do nosso companheiro António o seu tablete, com o qual inadvertidamente teria tirado uma inocente foto… Por onde andará o Deus pacífico e misericordioso, que perdoa aos pecadores e dá a outra face – neste caso, deixa tirar outra foto - quando o agridem?).     
Após a visita, descemos à terra, em sentido literal, e antes de iniciarmos a viagem de regresso a Atenas, aprovisionámo-nos com um almoço num restaurante local.
As mais de duas horas de viagem decorreram sem nada a assinalar e foram aproveitadas para algumas trocas de ideias, entre os luso-viajantes e a Aristeia, versando os problemas actuais com que os nossos dois países se defrontam, no combate aos novos bárbaros do Norte da Europa, que nos invadem, munidos dos seus note-books e respectivas folhas de excel.
Era já tarde quando o bus se imobilizou à porta do Novotel Atenas, onde ficaríamos alojados nos dois últimos dias da viagem. E foi neste momento que a missão de Aristeia tinha chegado ao fim, e os nossos caminhos se iam separar. A despedida no hall do hotel foi calorosa, houve mesmo um brilhozinho mais intenso nalguns olhos. Os sete dias de convívio franco e amigo, quebraram qualquer imaginária, mas não real, suspeição, que os Deuses do Olimpo criaram erradamente (os deuses por vezes também se enganam…).
E seria exactamente ao monte Olimpo que Aristeia iria no dia seguinte, levando o seu testemunho e o documento com a resposta da Pitonisa, que guardara religiosamente.


Entretanto os luso-viajantes desfrutavam da sua penúltima noite em terras helénicas. Amanhã, quais argonautas do séc. XXI, iriam demandar as ilhas do Golfo Sarónico.
Próxima crónica: Parte IV e última – Da viagem pelo reino de Poseidón ao adeus dos garbosos évzones.