sábado, maio 16, 2020

25 Abril 74 - as memórias do Albano


Para responder ao desafio do blogue do Atrium, e como estas memórias já começam a estar distantes, recorri ao “baú” onde procurei a minha agenda de 1974.
Nessa pequena agenda, no dia 25 de Abril de 1974, apenas se lê:
FAÇO 2 MESES DE NINDA - VEIO CORREIO – GOLPE EM LISBOA? – 127
Tive então a ideia de estruturar este curto depoimento com essas quatro referências, procurando recordar o seu conteúdo não explícito.
“FAÇO DOIS MESES DE NINDA”
No dia 25 de Abril encontrava-me em Ninda, no Leste de Angola, fazendo a construção de um aquartelamento. A minha companhia estava colocada no Luso (hoje Luena) a 1.300Km de Luanda. Era uma zona plana com baixa densidade populacional. Ninda ficava perto da fronteira com a Zâmbia. Eram, como lhes chamou Lobo Antunes que também lá esteve, “os cus de judas“. Nós dizíamos ”as terras do fim do mundo”. As instalações eram precárias pois o aquartelamento… ainda não estava construído. Faltavam-me dois meses para acabar a obra e voltar para o Luso.
“ O CORREIO “
Era o que esperávamos sempre ansiosamente. Era a nossa ligação à família, aos amigos, ao mundo. A chegada irregular do heli como correio era um “acontecimento”. Dizia-se que “correio e cerveja “era o que nunca podia faltar. Recordo-me da alegria dos que recebiam carta (aerograma) contrastando com a tristeza dos que a não recebiam.
“GOLPE EM LISBOA?”
Esta estranha referência com interrogação resulta de no dia 25 a rádio em Angola ter censurado todas as notícias sobre o movimento revolucionário. Ouvimos apenas ao fim do dia em rádios estrangeiras as notícias do golpe muito incompletas e contraditórias. Penso que nessa noite não dormi… com o ponto de interrogação na cabeça. Só no dia seguinte começámos a perceber o que se estava a passar e escrevi na agenda “o golpe das F.A. parece vitorioso”.
“127”
Eram os dias que me faltavam para o fim da comissão e que nós logo no início do ano marcávamos nos 365 dias das nossas agendas. Para mim esses 127 dias foram como que um sonho: o MPLA cessou as hostilidades, regressei logo em 5 de Maio à sede da minha Companhia no Luso, e aí integrei a comissão MFA para a Zona Militar Leste; na minha Companhia coordenei uma campanha de “consciencialização e politização” dirigida aos nossos militares. Fizemos jornais (o “Construir”), ocupámos a Rádio do Moxico, etc.
Era o nosso 25 de Abril! Era o fim de uma guerra colonial injusta!
Termino com um poema de António Cardoso, poeta angolano, publicado no nº 1 do nosso jornal, o “Construir”, em julho de 1974.


Quando será que este cacimbo nos abandona
e o Sol virá sorrir por cima do meu telhado?
... antigamente nos meus tempos de menino,
o meu telhado de zinco
tinha furos pequenos
por onde espreitava o Sol…
antigamente…
quando será que este céu pesado de chumbo nos abandona
e aquele azul antigo
virá sorrir por cima do meu telhado!


Achei este poema, de mais de quarenta anos, muito atual e adequado para fim de um depoimento em quarentena.
Albano Pereira, em Abril 2020