quinta-feira, maio 11, 2006

A Reforma da Segurança Social

Um artigo interessante e pertinente.

Inevitável?

As prioridades de cada Governo têm a ver com o que são de facto os seus objectivos. Pôr em causa o interesse das pessoas, da maioria das pessoas, não parece que seja uma prioridade moderna, nem incontornável

A última reforma anunciada por José Sócrates é a da segurança social. A receita, dada como inevitável, é simples. Aumentar os anos de trabalho, fazendo depender o valor e a idade da reforma da média de vida, baixar os valores das reformas de quem quiser continuar a reformar-se aos 65 anos e introduzir uma medida de discriminação positiva em função do tamanho das famílias, criando assim um estímulo financeiro à procriação. Uma medida que faz lembrar uma espécie de stakanovismo demográfico-procriativo. Inicialmente esta última medida foi até anunciada como uma penalização para quem não tinha filhos, numa clara formulação anticonstitucional, entretanto corrigida.
Espera-se agora que as propostas sejam concretizadas e aberto o debate. Mas espera-se sobretudo que ele não seja viciado. Refiro-me acima de tudo a que não se parta para a discussão com base no dogma de que esta é a única alternativa, já que este tipo de argumentos só serve para liquidar o próprio debate. Pessoalmente tenho a maior das dúvidas sobre que estas sejam as soluções mais correctas - e nem sequer me deixo cair na armadilha de considerá-las únicas. O que temo é o que irá acontecer daqui a uns anos quando esta solução falhar. Qual vai ser então a solução a apontar, seguramente também inevitável? Já agora ninguém se vai dar ao trabalho de explicar de forma consistente o que aconteceu às certezas apregoadas há menos de uma década pelo então primeiro-ministro António Guterres de que a segurança social portuguesa estava sã e salva para o século XXI? O que falhou desde então? Não são antes os pressupostos político-ideológicos que mudaram no PS?
Que se passa com o PS? Será que todos os dirigentes e militantes concordam com estas medidas? Será que antes de inscrevê-las no programa de Governo, alguém de facto as debateu no partido? Será que o vai fazer agora? Será que no PS toda a gente desistiu do legado social-democrata e aderiu às soluções de influência neoliberal que têm feito escola em muitos dos antigos partidos sociais-democratas da Europa? Será que no PS ninguém considera mais que a essência do Estado social é precisamente a segurança social, a segurança de condições de vida e de rendimentos de todos os trabalhadores na velhice e na doença? Na Alemanha, Willy Brandt morreu antes de ver Schroeder governar.
Por que razão, de há uns anos a esta parte, por toda a Europa se forma uma espécie de dogma, um unanimismo sem hesitação, sem dúvida, em defesa da desconstrução do Estado social? Será que algumas das soluções adoptadas em países europeus levam à sobrevivência do Estado social? Ou será que daqui a dez anos irão então dizer que afinal não haverá reformas, que o Estado social foi um brevíssimo episódio na longa história da desigualdade que constitui o mundo, uma panaceia exótica defendida por uns lunáticos europeus no século XX?
Tenho para mim que há outras soluções menos gravosas para quem trabalha, se bem que não tão benéficas para quem está interessado em fomentar a corrida das elites e da "
up stairs class" às companhias de seguros, em nome do mercado e da concorrência. Tenho para mim que a segurança social estará sempre assegurada se essa for a opção político-ideológica de quem governa, até porque as prestações do Estado para a segurança social serão, a cada momento, aquilo que forem as prioridades do Estado e as necessidades sociais. É para gerir essa questão que existem governos. E é por isso que não há inevitabilidades, há opções político-ideológicas baseadas em pressupostos políticos e ideológicos. As prioridades de cada Governo têm a ver com o que são de facto os seus objectivos. Pôr em causa o interesse das pessoas, da maioria das pessoas, não parece que seja uma prioridade moderna, nem incontornável. É, insisto, por opção política que se faz este tipo de apostas, que valorizam sobretudo o mercado e não o bem social. E este tipo de opção na Europa e no mundo, nos últimos 30 anos, tem um nome e é próprio de uma ideologia, o neoliberalismo - sei que em Portugal não é hábito chamar-se os bois pelos nomes e as pessoas gostam de fazer de conta que não há ideologias, pois é uma óptima estratégia para evitar o debate e não deixar os cidadãos ouvirem os argumentos dos outros, dos que pensam diferente e propõem diferentes soluções.
No debate a fazer há questões de fundo que não devem assim ser escamoteadas. E todas as perguntas e hipóteses devem ser consideradas. Incluindo a da criação de um imposto especial para financiar a segurança social a ser aplicado sobre as operações do mercado financeiro.
A laia de contribuição, deixo algumas perguntas que gostava de ver debatidas e respondidas com rigor e seriedade. O que põe em causa hoje em dia as receitas para a segurança social que não as punha no tempo de Guterres? Não será que um dos problemas do financiamento da segurança social é os descontos incidirem sobre baixos salários? Por sua vez, qual a incidência do aumento do desemprego na falta de financiamento da segurança social? E os imigrantes? Não é um facto que a sua integração legal no sistema faz deles os contribuintes que faltam para a sua sustentabilidade? Há mesmo uma crise demográfica? Porquê esta espécie de fúria malthusiana? Por que razão se deixou de considerar como válido o reequilíbrio populacional fruto da imigração?
E média de idade e esperança de vida? É igual em todos os estratos sociais? Em todos os grupos sócio-profissionais? Será que em Portugal os trabalhadores que ganham menos morrem mais tarde que os seus congéneres europeus? Será que em Portugal não se verifica a tendência geral na Europa de que morrem mais cedo os trabalhadores de profissões menos qualificadas, com menores salários e de estratos sociais mais baixos? Por que razão o factor esperança de vida vai ser igual para todos?
Já agora, por último, mas talvez um dos aspectos mais importantes. Por que razão é que a taxa de descontos tem de ser fixa? Ela não é igual para todos nos impostos, pois não? Por que razão a única discriminação positiva que o Governo encontrou é a baixa da percentagem em função dos filhos? Por que razão a taxa da segurança social não é variável em função de critérios como o valor do ordenado e a esperança média de vida do sector profissional de cada trabalhador? Por que é que quem ganha mais e pertence a um grupo social com uma média de vida mais elevada não desconta mais do que quem ganha menos e pertence a um grupo sócio-profissional que morre mais cedo?
Esta seria uma reforma digna desse nome - ao serviço da maioria.


São José Almeida in Público, 6 de Maio de 2006 (p. 14)