sexta-feira, outubro 17, 2014

O Atrium mergulhou nas terras do Ródão para um fim-de-semana luminoso

Gare de Santa Apolónia, oito horas e dezasseis minutos da manhã do dia 3 de Outubro. O Intercidades com destino à Covilhã, arranca vagarosamente da plataforma 5 levando no seu bojo um grupo de 20 estremunhados atriunistas e amigos, que irão iniciar uma aventura pelo interior do território nacional.
Numa região onde a história se escreveu na dureza do xisto milenar, o objectivo era o reencontro com a herança dos primeiros povoadores que nos deixaram a maior concentração de gravuras rupestres pré-históricas da Península Ibérica, ao longo de 40 quilómetros do Vale do Tejo, com as lendas e os mitos nascidos dos cultos pagãos, com os feitos militares vividos pelo velho Castelo de Wamba, com a memória dos templários, que aqui se instalaram em 1189, com a visão mágica das escarpas vigorosas das Portas de Ródão vigiadas pelo voo silencioso dos grifos.
Vila Velha de Ródão era o nosso destino!
Um mau começo é quase sempre o prenúncio de um fim feliz. E foi isso exactamente o que aconteceu aos 20 viajantes que desembarcaram na estação de Ródão e depararam com uma desoladora visão. A anunciada Recepção, nem vê-la, o edifício da estação deserto. A cena parecia retirada dos velhos westerns, com os viajantes sentados pelos cantos, encostados às suas bagagens, nas estações perdidas nas pradarias hollywoodescas, esperando não se sabe bem o quê – a única visão positiva aqui, era a existência, nas imediações, de uma Casa dos Amigos do Benfica, mas mesmo essa, tristemente encerrada…
Mas felizmente estamos em plena época das telecomunicações, e os telemóveis dos nossos eficientes coordenadores entraram em acção. Alguns telefonemas foram suficientes para se ter a informação pretendida: O motorista que nos iria transportar até à estalagem tinha sofrido um acidente. Agora era só aguardar que chegasse uma viatura de substituição, o que aconteceu passado algum tempo.
Já instalados na Estalagem Portas de Ródão, fomos recebidos pelo nosso anfitrião, o Nuno, que nos iria acompanhar durante toda a nossa estadia. Desde logo se estabeleceu uma relação descontraída e de saudável simpatia, extensível ao seu amigo Cristóvão que também nos acompanhou nestes dois dias, cujo corolário foi uma pungente despedida na estação de Ródão, que descreveremos mais adiante.
Após o café de boas-vindas, iniciámos a nossa deambulação com uma caminhada a pé por Vila Velha de Ródão, com uma passagem pela margem do rio Tejo, donde se avista a Capela da Senhora da Alagada e se desfruta uma vista magnífica sobre as Portas de Ródão.
A nossa primeira paragem foi no Núcleo Museológico do Lagar de Varas. A produção de azeite nas terras de Vila Velha de Ródão remonta aos tempos antigos: Romanos, visigodos e árabes, povos que se fixaram aqui em épocas distantes, já se dedicavam à produção deste preciosa matéria-prima com múltiplos usos: óleo alimentar, fonte de luz, cosmético, lubrificante, unguento, óleo sagrado, remédio…
(Os visigodos produziam e protegiam o azeite de tal modo que, nas suas leis de proteção à agricultura, prescreviam multas para quem arrancasse uma oliveira alheia). 
Hoje em dia o azeite desta região tem sido premiado com diversos galardões pela sua qualidade, e continua a ter uma importância determinante na economia local.
Depois de uma visita guiada, que nos mostrou as etapas da produção do azeite, desde os métodos primitivos até aos sistemas mecânicos mais modernos, e das habituais compras na loja do Núcleo, rumámos para a Estalagem, onde nos deliciámos com um excelente almoço.
Depois de um merecido descanso na esplanada, cujas vistas para o Tejo e para as Portas de Ródão são um regalo para os nossos olhos, retomámos a visita, e o nosso primeiro ponto de paragem foi o Espaço Museológico de Arqueologia de Vila Velha de Ródão. Instalado nos antigos Paços do Concelho, o Centro de Interpretação da Arte Rupestre do Vale do Tejo (CIART) reúne informação sobre um dos mais importantes conjuntos de Arte Rupestre pós-Paleolítica, constituído por mais de 20 mil gravuras ao longo de 40 quilómetros nas margens do rio Tejo.
A visão das obras de arte dos nossos longínquos antepassados, que por aqui andaram, deixou-nos uma sensação de sentida curiosidade e de algum encantamento por esta herança excepcional.
Havia que aproveitar o tempo, que se apresentou magnífico (mais uma vez os deuses estiveram com o Atrium…), e assim rumámos de seguida para o conjunto o patrimonial composto pelo Castelo de Ródão (também popularmente conhecido por Castelo do Rei Wamba por associação ao último rei visigodo) e pela Capela de Nossa Senhora do Castelo, conjunto este que foi objecto de obras de recuperação e classificado em 1990 como Imóvel de Interesse Público.
A torre-atalaia hoje existente, cuja construção é atribuída aos Templários, integrada na Açafa, um território doado por D. Sancho I à Ordem do Templo em 1199, é possivelmente o único vestígio que resta do primitivo castelo construído no séc. VII pelos visigodos. Nos tempos mais próximos, em particular nos séculos XVIII e XIX, ele viria a ser utilizado como base de artilharia durante a Guerra dos Sete Anos (1756 e 1763) e na 1ª Invasão Francesa (1807).
Situado numa cota de 315 metros, dele se desfruta uma visão de grande beleza sobre o Rio Tejo e as fantásticas Portas de Ródão.
A cerca de 150 metros situa-se a Capela, um templo rústico erguido em honra de Nossa Senhora do Castelo, edificada nos séculos XVI/XVII, de arquitectura religiosa maneirista.
Com os olhos cheios desta paisagem única, descemos até ao porto de Ródão, onde embarcámos para um passeio no Tejo, num fim de tarde excelente, com as condições de luz e de temperatura ideais. A passagem pelas Portas, com as escarpas a apertarem o Tejo num abraço vigoroso, os grifos pairando no alto no seu voo gracioso, a brisa suave e as águas tranquilas do rio, constituíram um momento único de prazer, de paz e de reencontro com a natureza.
O dia iria terminar com um excelente jantar no restaurante Vale Mourão, na Foz do Cobrão, mas antes, alguns viajantes mais afoitos não perderam a oportunidade de um retemperador banho, na piscina da Estalagem.
O Sábado amanheceu com um ligeiro nevoeiro sobre o vale do Tejo, que lhe emprestava uma visão diferente e esteticamente agradável. Após o pequeno-almoço tomado, dirigimo-nos até à aldeia de xisto do Vale do Cobrão.
Esta aldeia situa-se num local onde são ainda visíveis vestígios do oceano primitivo que já cobriu estas terras, como por exemplo as rochas com cerca de 500 milhões de anos marcadas pela ondulação e pelos fósseis marinhos. Possui uma arquitectura de cariz popular, onde o quartzito e o xisto são os materiais dominantes, bem como um conjunto de moinhos que acompanhavam o percurso da ribeira do Cobrão.
Existem também aqui locais de grande importância histórica e arqueológica, como as conheiras, depósitos de calhaus rolados nas margens do rio Ocreza, que marcam as antigas zonas de exploração aurífera, efectuada desde a época dos romanos até ao período contemporâneo.
Visitámos o Centro de Interpretação da Foz do Cobrão, bem como o Forno do Povo. Aqui tivemos a oportunidade de um interessante convívio com duas habitantes da aldeia, que nos transmitiram as suas vivências e recordaram as histórias ligadas à utilização deste forno comunitário. Foi um momento de boa disposição que permitiu um contacto enriquecedor para os viajantes, que vieram de Lisboa em “manada”, no dizer acertado de uma das nossas interlocutoras…
De novo o regresso à Estalagem, para o último almoço em terras da Açafa, e após um curto descanso, de novo em movimento… O objectivo era a Casa das Artes e Cultura do Tejo, um polo dinamizador das actividades artísticas do concelho.
Por azar, ou talvez não, a Casa estava encerrado por motivos de uma programação que tinha ocupado todo o fim-de-semana anterior. Mas como há males que vêm por bem, a visita às suas instalações foi substituída por uma sessão de leitura de poesia, pela poetisa Ilda Ribeiro, que por motivo da sua amizade com a Guida Boavida, se tinha associado ao grupo e simpaticamente se tinha disponibilizado a ler alguns dos versos do seu livro “Crónicas da minha infância: os sentidos da memória”, uma interessante publicação, ilustrada com gravuras do Mestre Cargaleiro.
Então, ao ar livre de uma tarde luminosa, no anfiteatro da Casa das Artes, aconteceu poesia. O acaso (ou talvez não… era o tal prenúncio do fim feliz que preconizámos no início desta crónica) proporcionou-nos um final à altura desta excelente escapadela.
O fim da festa aproximava-se. Já na Estalagem, depois das malas arrumadas, ainda houve tempo para um lanche de despedida e para uns momentos de descontraído convívio com os nossos anfitriões, o Nuno e o Cristóvão, que nestes dois dias mostraram uma disponibilidade total para tornar a nossa estadia irrepreensível.
Aliás, a cena comovente da despedida na estação de Ródão, com os lenços a acenar, lágrimas a correr copiosamente e até com algumas manifestações mais ruidosas, dignas de competentes carpideiras, é bem o testemunho das relações de amizade que se estabeleceram entre nós.
(Só não compreendemos bem a disfarçada alegria dos nossos anfitriões, quando no placard da estação apareceu o anúncio de que o intercidades estava a chegar à tabela… será que? Não! Vamos pensar que apenas desejavam o nosso regresso tranquilo, e a horas, ao conforto dos nossos lares…).