quinta-feira, novembro 20, 2014

Da Exposição do Capitão Menezes Ferreira ao Drama Político de Pier Paolo Pasolini

O dia começou com a visita guiada ao Museu Rafael Bordalo Pinheiro, onde tivemos a oportunidade de apreciar a exposição da obra artística de Menezes Ferreira, integrada nas comemorações do centenário da Grande Guerra.
Menezes Ferreira, capitão de carreira, esteve presente no teatro da guerra, em África e na Flandres, e daí a sua especial apetência pela temática militar, que desenvolveu sempre com um humor crítico no traço. Para além do desenho e da pintura, também se aventurou no campo da escrita publicando diversas obras das quais destacamos “O Fuzilado” (que aborda a questão polémica dos fuzilamentos por “traição” na Grande Guerra) e “João Ninguém – soldado da Grande Guerra”. Deste último transcrevemos este parágrafo: “… sessenta mil homens tisnados por um sol ardente, sessenta mil diplomatas que melhores os não poderia ter enviado a velha Lusitânia para agitar bem alto a sua antiga flâmula de nação independente, partiram, pois, em direcção à Flandres, a defender os seus direitos, a combater o Boche”.
Nascido em Lisboa em 1889, aderiu à República, tendo sido ajudante de Brito Camacho, e envolveu-se mais tarde numa conspiração militar contra o regime instituído a 28 de Maio.
Na vertente artística, foi membro fundador da Sociedade de Humoristas Portugueses, tendo exposto trabalhos de cunho modernista em vários salões.
A manhã tinha chegado ao fim, mas o dia ainda iria ser longo. O almoço para alguns dos caminhantes teve lugar no restaurante Valbom. O prato forte seria servido no Teatro Nacional D. Maria II…
Então de noite fomos ao teatro. A peça era “Pílades” de Pier Paolo Pasolini (PPP), levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II, com adaptação e encenação de Luís Miguel Cintra. Excelente a encenação e o nível das interpretações, todavia a peça em si não é de fácil leitura, a ponte entre a antiguidade clássica e os nossos tempos não é imediata e possibilita um conjunto de interpretações e levanta outras tantas dúvidas, que neste modesto texto procuraremos ajudar a esclarecer, ou se calhar, iremos ainda baralhar mais os espíritos dos leitores…
Talvez (ou talvez não…), uma breve incursão pela história da antiguidade seja uma contribuição para a compreensão da peça. Vamos tentar!
 A Guerra de Tróia tinha terminado. Agamémnon, rei de Argos regressa à sua cidade e vai ser assassinado por sua mulher Clitemnestra, com a cumplicidade do amante, Egisto. Orestes, filho de Agamémnon, vê a sua vida também ameaçada por ser o herdeiro do trono, e é salvo pela sua irmã, Electra, que o leva para a corte de Estrófio, rei de Crisa onde cresceu seguro e pôde conquistar a amizade (…e mais alguma coisa, segundo alguns historiadores…) de Pílades, seu primo e filho de Estrófio.
Atingida a maioridade, e obedecendo às ordens de Apolo, Orestes regressou a Argos com Pílades, já então seu amigo inseparável, para vingar o terrível crime cometido por Egisto e por sua própria mãe, Clitemnestra. Obtendo o auxílio de Electra, que o introduz no palácio, e acompanhado por Pílades, que o instiga a agir no momento em que hesita diante dos seios desnudos de sua mãe suplicante, Orestes executa a justiça de Apolo, cometendo o matricídio. Por sua vez Pílades assassina Egisto.
Após esta esclarecedora (?) introdução histórica, pensamos que estaremos em melhores condições de dizer algo sobre a peça, propriamente dita, vamos a isso:
A acção começa quando os corpos de Agamémnon e Clitemnestra são retirados da praça e sepultados, e quando os protagonistas Orestes, Electra e Pílades vão dar corpo a um drama político, que PPP vai desenvolver com olhos postos nos tempos modernos.
Na interpretação mais citada, para PPP, Argos era a Itália a libertar-se do regime fascista, através do assassinato de Mussolini e da sua amante (simbolicamente eram Egisto e Clitemnestra nos papéis trocados…). Aqui Orestes entra em cena, e inspirado por Atena (a deusa da democracia liberal… ao que chegámos, uma deusa vendida às excelsas virtudes do todo poderoso Mercado…), oferece a Argos a democracia, uma democracia burguesa, liberal e capitalista, que numa primeira fase vai trazer grande prosperidade económica. É o pós-guerra em Itália nos anos 50, com o Plano Marshall, e o governo do Partido da Democracia Cristã, apoiado pelo Partido Socialista (que pôs na gaveta o seu socialismo…), excluindo do poder o Partido Comunista.
Em resposta a esta situação, que mantém uma estrutura de poder tão autoritária, tão injusta e tão afastada dos reais interesses do povo, Pílades revolta-se e junta-se nos montes, aos camponeses e aos operários, aos desempregados, aos pobres, aos excluídos (os marginais, o lumpemproletariado, na classificação marxista).
Inspirado nas Euménides (as deusas dos resistentes, que resultaram da transformação das Fúrias - as deusas da irracionalidade “selvagem” e reaccionária), organiza a revolução “socialista”, e avança sobre Argos.
Mas para PPP, esta revolução está condenada ao fracasso, por um lado pelo facto de o seu dirigente máximo, Pílades, não ser membro das classes que se revoltam (ele nasceu na classe superior, é filho de reis e amigo de infância de Orestes), e por outro lado porque (citando PPP), “as grandes massas operárias e as elites progressistas ficaram isoladas neste novo mundo do poder, o que as tornou conservadoras. Assim o conformismo de esquerda fossilizou-se…”. Pílades no fundo é Orestes! É o problema da alternância sem alternativa que aqui está implícito.  
E pronto! Agora quem quiser fazer um exercício de adaptação para o nosso Portugal basta um pouco de imaginação. O assassinato de Egisto e Clitemnestra seria entre nós a providencial queda da cadeira de Salazar (a pobre da D. Maria não entrava no filme, só morreria de velhice uns bons anos depois…), Orestes seria o nosso Mário Soares (em novinho, porque ele agora anda muito mais esquerdista que o Pílades…), e por aí adiante. Como não queremos substituir-nos à vossa imaginação, ficamos por aqui.
Em resumo, foi uma peça interessante, algo comprida (aquelas três horas… mais parecia um filme do mestre Manuel de Oliveira), excelente representação, bonito cenário, e muita coisa para perceber (ou para não perceber…) e para interpretar, da maneira em que cada um se posiciona neste teatro da vida.