segunda-feira, setembro 01, 2014

Irlanda 2014 - (4) O Atrium à descoberta da Ilha Esmeralda

Parte IV – Um final grandioso na Calçada do Gigante, com um epílogo no Crown Liquor Saloon de Belfast.
A saída pela manhã cedo, neste penúltimo dia de viagem, ofereceu-nos uma bonita visão de Derry, reflectindo-se nas águas tranquilas do rio Foyle. Ao ver esta imagem da cidade, que transmite tanta paz e serenidade, não pudemos deixar de pensar, por contraste, na violência e no sofrimento que, até há bem pouco tempo, aqui estavam instalados no quotidiano dos seus habitantes.
Os 65 quilómetros que nos separavam da Calçada do Gigante (Giant’s Causeway) foram vencidos sem dificuldade. O fresco da manhã e a luminosidade da paisagem ajudaram a superar algum cansaço físico porventura existente.
Chegados à Calçada, e antes de começarmos a caminhada desde o Centro de Visitantes, queremos fazer uma declaração de princípios, sobre o que acreditamos ser a sua verdadeira origem: As mais de 40.000 colunas de basalto que constituem esta extraordinária escadaria, que se estende suavemente para as águas do Canal do Norte, são tão perfeitas que as explicações científicas (da lava liquefeita, do arrefecimento rápido, das fissuras criadas por esse arrefecimento, das novas erupções vulcânicas, da erosão pela neve, etc., etc., tudo isto num espaço de mais de 60 milhões de anos), afiguram-se muito mais irreais, e muito menos credíveis, do que a antiga lenda que atribui a sua construção ao gigante Finn MacCool (o já nosso conhecido chefe dos Fianna… ver a Parte I desta crónica). O seu objectivo ao construir a Calçada, era o de ir ao encontro da sua amada, que vivia na ilha de Staffa, na Escócia. Esta lenda, além de muito mais poética, parece muito mais verosímil. E quando sabemos que na Escócia, no local de destino do nosso apaixonado gigante, existe um conjunto de colunas idênticas a estas, então as dúvidas que pudessem existir, dissipam-se por completo… Aliás, não é por acaso que se chama a “Calçada do Gigante”, e não a “Calçada dos Vulcões”…
É de facto um lugar único. Olhamos em redor e são colunas e mais colunas, umas maiores outras mais pequenas, umas mais escuras outras mais claras, subimos e descemos degraus. E todos tão geometricamente hexagonais! Os dedos num frenesim castigam os obturadores das máquinas fotográficas. A paisagem tem qualquer coisa de irreal, de tal modo que não demos pelo tempo passar, e lá chegou a hora de regressar. Apanhámos o minibus (1 Libra, que aqui o euro ainda não chegou), na direcção do Centro de Visitantes, o caminho era a subir e o cansaço já começava a pesar.
Feitas algumas compras voltámos ao Pinto Lopes’s bus, para percorrer os 96 quilómetros de caminho até à capital da irlanda do Norte, a cidade de Belfast.
Ali chegados, fizemos um percurso de autocarro pela zona das docas, conhecida por “Docks and Titanic Quarter”, situada na margem direita do rio Lagan. Entre outros equipamentos portuários, podemos ver o edifício do museu dedicado ao naufrágio do Titanic, que ocorreu em Abril de 1912. É um edifício com uma arquitectura arrojada, que procura reproduzir a grandiosidade do malogrado navio. As instalações onde o Titanic foi projectado, e os pórticos, pintados de amarelo com as iniciais “H & W” (que correspondem aos estaleiros Harland and Wolff, onde ele foi construído), estão cuidadosamente preservados neste local.
Abrimos aqui um parêntesis para fazer uma referência ao aproveitamento exagerado, com intuitos meramente comerciais, de um acontecimento trágico, no qual perderam a vida mais de 1.500 pessoas (vê-se a “marca” Titanic por todo o lado: cafés, lojas, os “Titanic tours”, a “Titanic Exhibiti”, as bugigangas de toda a espécie que se vendem nas lojas de “souvenirs” para turistas, etc. etc.). Uma coisa é assinalar num memorial ou num museu o acontecimento, homenageando ao mesmo tempo a memória das vítimas, outra coisa é a sua desmedida utilização comercial, com fins exclusivamente lucrativos. Apetece perguntar se pagam os devidos royalties às famílias dos mortos que, de certo modo, alimentam esta estranha forma de obter receitas à custa de uma tragédia. Fica o desabafo de alguém, para quem não vale tudo para fazer dinheiro…
Mas voltemos à cidade. Belfast, também é conhecida por “Old Smoke” pelo facto de, enquanto o resto da irlanda permanecia rural e agrícola, ela ter sido a primeira cidade industrial da era vitoriana, a sofrer o impacto da Revolução Industrial. Os estaleiros, cordoarias, tecelagens e fábricas de tabaco, trouxeram uma tal prosperidade à cidade, que no final da I Guerra Mundial, já tinha uma população de cerca de 400.000 habitantes (hoje tem perto de 600.000).
No nosso trajecto, ainda na zona portuária, pudemos observar os diversos murais provenientes das duas comunidades, católicos e protestantes, pintados nas paredes de prédios e nos muros. A partir de 1968, data em que eclodiram aqui violentos conflitos, conhecidos eufemisticamente por “the Troubles”, a arte the pintar murais tornou-se uma das mais populares formas de expressão. Nas áreas protestantes, eles representam a lealdade à Coroa Britânica enquanto nas áreas católicas apresentam a vontade de se libertarem do jugo britânico e de se juntarem à República da Irlanda, assim como divulgam o folclore tradicional e a língua irlandesa. Nalgumas ruas, os marcos foram pintados de vermelho, branco e azul, as cores da Grã-Bretanha, noutras de verde, branco e laranja, as da República da Irlanda.
Hoje, embora todos os problemas não estejam ainda totalmente resolvidos, estes murais, com toda a carga violenta que encerram, podem ser vistos como marcas de um período histórico muito difícil, que parece ter sido ultrapassado nas suas formas mais radicais.
A paragem seguinte foi no hotel Park Inn, onde ficamos alojados, um simpático e bem situado hotel. Após um breve descanso o almoço foi aqui servido.
Da parte da tarde houve tempo para um percurso a pé pela cidade, procurando sentir o seu respirar e conhecer os locais de maior interesse. Começámos pela City Hall, a Câmara Municipal, um imponente edifício em pedra rodeado por um jardim onde existe um memorial aos náufragos do Titanic e um obelisco em memória aos heróis irlandeses das duas guerras mundiais. Devido à onda de calor que nestes dias assolou a Irlanda, o relvado do jardim mais parecia a praia da Costa da Caparica ao domingo. Tudo a tomar banho de sol, de tronco nu e bronzeador a preceito, que dias como este por aqui são raros...
Seguimos depois até à St. Anne’s Cathedral, uma catedral protestante com uma fachada neo-romântica, cuja construção foi concluída em 1904, e que possui uma bonita colecção de vitrais.
Da catedral partimos em busca do WaterFront Hall, que é uma espécie de doca em frente ao rio Lagan. É lá que fica uma das estátuas mais bonitas da cidade. Sobre um globo, feito de bronze, uma figura feminina, desenhada com tubos de aço, segura um anel. Ela simboliza a paz na Irlanda do Norte e, particularmente, em Belfast. A escultura chamada “Beacon of Hope” (Farol de Esperança) foi feita em 2007 por Andy Scott.
Quase ao lado desse monumento, está o “Big Fish”, uma estátua de cerâmica, feita em 1999, para assinalar a recuperação do rio Lagan. O grande peixe é formado por pedaços de cerâmica, decorados com textos e imagens que contam a história de Belfast.
A garganta já estava seca, e a procura por uma esplanada onde se pudesse beber uma Guiness foi infrutífera, pois aqui em Belfast há restrições à bebida de álcool em público, em certas zonas da cidade. Então um grupo mais sedento arrostou com a caminhada até ao bar do nosso hotel, por sinal um bar bem simpático, e aí afogou a sua sede numas “pints”, não da Guiness mas da “Belfast Black”, uma cerveja preta fabricada aqui, mais ligeira e com um sabor a malte menos acentuado.
Antes do jantar, ainda houve tempo, e forças, para mais um giro, desta vez passando pelo George’s Market (uma das mais antigas atracções de Belfast, construído em 1890 e considerado um dos melhores mercados do Reino Unido), e pela “Grand Opera House” (um magnífico edifício vitoriano construído em 1895, da autoria do arquitecto Frank Matcham).
Depois do repasto, o último em terras irlandesas, houve um convívio de despedida, oferecido pela nossa guia Marisa Rebelo, em nome da Pinto Lopes Viagens, no Crown Liquor Saloon, um verdadeiro templo vitoriano da bebida. Construído em 1826 tem uma bela fachada de azulejos policromados e no interior uma exuberante decoração com estuques, madeiras, vitrais, mármores, mosaicos, antigas lâmpadas de gás, e um esplêndido tecto esculpidos em gesso.
Foi um local perfeito para beber um Jameson e encerrar esta nossa viagem à Ilha Esmeralda, esta Irlanda que, nos versos de um poema popular, “é tão verde, como o cabelo das sereias ao amanhecer…”. Amanhã é a ligação para Dublin e o voo da Air Lingus para a nossa boa e velha Lisboa.
O dia derradeiro amanheceu claro, e a alvorada foi cedo, pois o voo estava marcado para as 11h45m. Meio ensonados, percorremos a bordo do Pinto Lopes’s bus, os cerca de 170 quilómetros que nos separavam do Aeroporto de Dublin. Aqui, feitas as habituais operações de embarque, e após as despedidas da Marisa, lá nos instalámos no airbus da Air Lingus.
Arrumadas as bagagens e sentados os passageiros, o avião começou lentamente a deslocar-se, quando algo de estranho numa varanda da gare, nos chamou a atenção. Era um grupo indistinto de pessoas que se despediam, acenando para o nosso avião. Ao fixá-las melhor, através da janela do airbus, não conseguimos evitar uma exclamação de surpresa e ao mesmo tempo de alegria.
Quem estava ali a despedir-se dos lusos viajantes, eram todas as personagens ilustres desta Irlanda Esmeralda, de quem ficámos amigos: Lá estava o Óscar Wilde acenando com o “O Retrato de Dorian Gray” na sua mão esquerda, o Samuel Beckett esperando pelo Godot, o Bernard Shaw com a sua inconfundível barba branca, empunhando uma bobina do seu Pigmalião, o Jonathan Swift trazendo às cavalitas o pequeno Gulliver, o James Joyce e os seus característicos óculos redondos, rodeado de gente de Dublin, o W. B. Yeats com o seu ar místico e melancólico, acenando com umas folhas de papel amarrotadas, onde tinha escrito alguns dos seus belos poemas e o bom gigante Finn MacCool, acompanhado pelos seus terríveis guerreiros Fianna, destacando-se pela sua imponente figura e pela exuberância das suas saudações. Lá estavam também os duendos, os leprechauns e também o Daniel O’Connell e o Michael Collins. Um pouco afastado, com a imprescindível “pint” na mão, e as algibeiras atulhadas de notas, o senhor Arthur Guiness, mais atrás, um jovem de ar pouco recomendável, exibia triunfante uma carteira de cabedal castanha… (o que pretenderia ele dizer?).
Enfim, foi uma despedida inesperada e comovente, que nos deixou a certeza de que, mais tarde ou mais cedo, voltaremos a esta bela terra (o único país cujo brasão de armas é um instrumento musical, a Harpa), onde deixámos bons amigos. Não era um adeus, era um até breve!
Alguns minutos depois o airbus acelerou pela pista, elevou-se suavemente no céu irlandês e voou rumo ao Sul. O nosso caminho era a rota de Lisboa.