terça-feira, maio 19, 2020

25 Abril 74 - as memórias do Jorge

Em abril de 1974, eu tinha 25 anos e trabalhava numa metalúrgica na cintura industrial de Lisboa, mais exatamente na Quinta do Paizinho.
Nessa manhã, como habitualmente ao acordar, liguei o transístor. Estranhei o “aqui comando das forças armadas…” e comentei com a Fátima que algo estava a acontecer. Como quase toda a população também nós fomos apanhados de surpresa. Continuei a rotina e por volta das sete horas já estava na paragem da camioneta. Encontrei lá um operário, conhecido de vista. A excitação venceu e meti conversa:
- Ouviu alguma coisa sobre o que se está a passar no país? Parece que houve um golpe de estado.
A resposta veio rápida e foi mais ou menos isto:
- Oiça, eu não percebo nada de política nem me interessa, a minha política é o trabalho.
Ficámos por ali. Era uma resposta muito comum naqueles tempos.
Na fábrica, pelas oito horas, o ruído das máquinas fez-se ouvir e tudo parecia decorrer com normalidade.
Alguém nos chamou à atenção para uma coluna militar que se deslocava pela Estrada de Sintra em direção a Lisboa. Corremos para as janelas ainda a tempo de ver os camiões. Este facto, alguns rumores e umas poucas notícias que chegavam, iam desestabilizando o ambiente, à medida que o tempo passava.
Recordo que foram as operárias da secção de montagem, as primeiras a expressar sinal de preocupação. Falavam dos filhos e de familiares que tinham deixado em casa. Muitas delas residentes ali perto, no bairro de barracas que ladeava o Estrada Militar de Circunvalação e nas pré-fabricadas do Bairro da Boa Vista.
Já eram poucos os que se mantinham nos postos.
As conversas generalizavam-se e as máquinas deixaram de se ouvir. Os mais afoitos começaram a sair e, aos poucos, outros seguiram-lhes o exemplo. Em pouco tempo só restava o guarda da fábrica.
Ainda não tinha acabado a manhã e também eu já estava na Baixa a viver todo aquele alvoroço, no acompanhar dos militares revoltosos para onde quer que fossem. Gente, muita gente, a gritar vitória e a soltar vivas. Não havia informação atualizada ou fidedigna sobre a evolução do movimento, mas ninguém parecia importar-se. Falava-se de rendições, do sucesso do golpe, até de muitas outras coisas que nunca existiram nem aconteceram. A primeira conquista estava assegurada, ali mesmo, na rua, pessoas falavam livremente sem qualquer tipo de receios e sobre o que lhes dava na gana.
Mais à frente, do cimo duma viatura militar, um soldado lançava munições de G3 aos que o rodeavam. Ainda tenho uma que guardo com carinho.
Jorge, em Abril 2020.