quarta-feira, abril 20, 2016

O Atrium em visita à cidade de Elmano Sadino e de Luísa Todi, e onde repousa o canto interrompido de Zeca Afonso


Foi naquele já longínquo 24 de Fevereiro de 1987, que uma multidão de mais de trinta mil pessoas, encheu as ruas de Setúbal numa sentida despedida do homem, do revolucionário e do autor de canções que marcaram a nossa geração, e que ficarão para sempre gravadas na história da música popular portuguesa.
Os versos da sua Balada de Outono reflectem de um modo muito belo, como só os poetas o sabem fazer, aquele momento de tristeza, vivido por todos os que estiveram presentes.
Águas do rio correndo / Poentes morrendo / P'ras bandas do mar / Águas das fontes calai / Ó ribeiras chorai / Que eu não volto a cantar.
Cerca de duzentos anos antes, outro poeta tinha ligado o seu nome à cidade de Setúbal. Libertino, truculento, irreverente, boémio, talentoso (o seu temperamento impulsivo e a sua índole contestatária acabaram por levá-lo às masmorras da Inquisição), considerado o maior representante do arcadismo lusitano, foi ele Manuel Maria Barbosa du Bocage, o Elmano Sadino, pseudónimo que adoptou na Nova Arcádia, a academia literária a que pertenceu (pseudónimo construído com um anagrama do seu primeiro nome, e a referência ao rio que banha Setúbal).  
O seu autorretrato ficou espelhado neste inspirado poema.
Magro, de olhos azuis, carão moreno, / Bem servido de pés, meão na altura, / Triste de facha, o mesmo de figura, / Nariz alto no meio e não pequeno; / Incapaz de assistir num só terreno, / Mais propenso ao furor do que à ternura; / Bebendo em níveas mãos, por taça escura, / De zelos infernais letal veneno; / Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, / E somente no altar amando os frades, / Eis Bocage, em quem luz algum talento; / Saíram dele mesmo estas verdades, / Num dia em que se achou mais pachorrento.
Uma outra figura artística deixou o seu nome inscrito na história de Setúbal. Aqui nascida em 1753, Luísa Todi, contemporânea de Bocage, foi uma cantora lírica que alcançou grande sucesso na Europa de então. Londres, Paris, Berlim, Turim, Varsóvia, Veneza, Viena, São Petersburgo foram algumas das cidades em que Luísa Todi passou largas temporadas, convivendo de perto com a aristocracia europeia, como foi o caso de Frederico II da Prússia e Catarina II, imperatriz da Rússia. 
Concluído este introito, no qual pretendemos dar o devido destaque a estas três figuras da cultura, inseparáveis desta cidade, vamos regressar ao presente, e à nossa visita do passado dia 12 de Março.
A manhã soalheira já adivinhava um dia bem passado, que se iniciou no restaurado Convento de Jesus, um belo edifício de estilo gótico, fundado no reinado de D. João II em 1490, que é considerado como um dos primeiros exemplares do estilo manuelino. O autor do seu projecto, o arquitecto de origem francesa, Diogo Boitaca (1460 – 1528), viria a ser escolhido, por D. Manuel I em 1502, para executar os planos da construção do Mosteiro dos Jerónimos, onde pôde desenvolver e consolidar o estilo manuelino. Agraciado pelo monarca com o título de “Mestre das Obras do Reino”, colaboraria ainda nos projectos da Torre de Belém e do Mosteiro da Batalha.
O interior da igreja gótica é magnífico, destacando-se pela sua originalidade as belas colunas torsas, executadas em brecha, uma rocha sedimentar, que se encontra apenas na Serra da Arrábida.
A fundação do Convento é atribuída a Justa Rodrigues Pereira, que na sua mocidade manteve uma relação amorosa com um certo D. João Manuel, frade carmelita e bispo da Guarda, de quem teve dois filhos. Pensa-se que, arrependida da sua conduta, Justa Rodrigues renunciou ao amor pelo frade carmelita, adquirindo enorme virtude e compostura moral, sendo admitida no paço real como ama-de-leite do então Infante D. Manuel, futuro rei D. Manuel I.
A visita prosseguiu no convento, onde se encontra instalado o Museu de Setúbal, cujas obras de recuperação ainda não se encontram concluídas, onde pudemos apreciar a arquitectura do edifício bem como as coleções relacionadas com arte, história e arqueologia, sobressaindo as coleções de pintura, sobretudo a do século XVI, escultura sacra, ourivesaria, azulejaria e outras artes decorativas.
Ainda antes do almoço tivemos a oportunidade de visitar mais dois locais do nosso périplo setubalense, o Mercado do Livramento e a Galeria Municipal do Banco de Portugal.
O Mercado do Livramento, inaugurado em 1930, considerado em 2015 um dos melhores mercados de peixe do mundo, pela publicação norte-americana USA Today, constitui um local agradável não só pela enorme variedade de produtos, especialmente de peixe fresco, mas também pelo seu bonito edifício com colunas em ferro fundido e pelos enormes painéis de azulejos, das décadas de 30 e 40 que retratam parte da história da cidade através de cenas da vida quotidiana, num total de cerca de 5700 azulejos.     
A Galeria Municipal do Banco de Portugal, encontra-se instalada num vetusto edifício com influências de Arte Nova, da autoria de Arnaldo Adães Bermudes, que albergou a sede daquela instituição financeira entre 1917 e 1994. Ali pudemos apreciar o conjunto das 14 pinturas do retábulo da capela-mor da Igreja de Jesus, consideradas uma obra-prima de um dos maiores pintores portugueses do século XVI, Jorge Afonso, conjunto esse que já foi apresentado em várias cidades europeias, nomeadamente em Sevilha, na Expo 92.
Com o nosso apetite estimulado pela brisa marítima da frente ribeirinha de Setúbal, e também pela dose de cultura já acumulada, foi com alguma voracidade que nos dirigimos para o restaurante Restinguinha, situado no caminho para a Serra da Arrábida, onde nos deliciámos com uma refeição variada de peixe grelhado que incluiu o inevitável choco frito.
Já devidamente apetrechados, e depois de um breve descanso, iniciámos a segunda parte do nosso programa com a visita ao Museu do Trabalho Michel Giacometti.
Este museu instalado numa antiga fábrica de conserva de peixe, a M. Perienes Lda. criada em 1919, nasceu para albergar a coleção etnográfica, reunida em 1975 por alunos do Serviço Cívico Estudantil, no âmbito do plano de Trabalho e Cultura, sob a supervisão de Michel Giacometti. O actual museu, que em homenagem ao seu fundador passou a denominar-se Museu do Trabalho Michel Giacometti, abriu as portas ao público a 18 de maio de 1995, acolhendo três exposições permanentes: “A Indústria Conserveira (Da lota à lata) ”, “Mundo Rural – Coleção Etnográfica Michel Giacometti e a Génese do Museu”, “Mercearia Liberdade – Um património a salvaguardar”.
O espaço da exposição “Da lota à lata” transportou-nos aos tempos de grande prosperidade para a indústria conserveira (particularmente aqui em Setúbal, onde em 1930 chegaram a laborar 130 fábricas, hoje não há uma única), mas de grande dureza nas condições de trabalho para os empregados, na sua grande maioria mulheres, que nas fábricas, se ocupavam de quase todas as tarefas.  
Tudo começava com o moço da bicicleta, que ia pelas ruas de Setúbal gritando a avisar que havia peixe, forma de chamar as mulheres para a fábrica, para se entregarem às diversas tarefas do processo. Elas salmonavam e lavavam o peixe, faziam o engrelhamento, descabeçamento, enlatavam, encaixotavam. Quando havia peixe suficiente, o trabalho estendia-se por vezes até 16 ou 17 horas por dia, de segunda-feira a domingo.
Aos homens eram destinadas, normalmente, outras tarefas, nomeadamente a feitura e o fecho das latas. Eram os soldadores, que constituíam na altura das classes mais politizadas e reivindicativas entre o conjunto do operariado do sector.
Com a preciosa colaboração de dois elementos do grupo, a Maria de Carmo e o José Cardim, assistimos à recreação viva de alguns dos momentos desta dura labuta fabril, sendo aqui de destacar o esforçado empenho do nosso amigo José Cardim, que nos fez crer que se tinha perdido uma vocação inata para estas tarefas “da lota à lata”…
O último núcleo que visitámos, a “Mercearia Liberdade”, é uma interessante reconstituição de uma mercearia típica, que esteve em funcionamento durante cem anos na Av. Da Liberdade, em Lisboa, e que foi integralmente reconstruída no interior do Museu, com o balcão, as balanças, uma brilhante caixa registadora, os medidores de líquidos, os armários, os escritórios e os produtos, desde os bacalhaus, os azeites, os vinhos e claro, muitas latas de conservas.
Esta possibilidade de viver o funcionamento e a organização de uma antiga mercearia, ver os pesos, as medidas, a forma como se cortavam e embalavam os produtos, ao mesmo tempo que preserva a memória de um passado ainda recente, vem acrescentar ao museu um espaço de aprendizagem, sobretudo para os mais jovens.
O périplo estava a chegar ao fim, o último objectivo era a Casa da Cultura. Instalada num magnífico e bem recuperado edifício, ela constitui um polo que pretende dinamizar a atividade artística desenvolvida no concelho, nas suas diversas valências, ao serviço do movimento associativo e da população. Está organizada nos seguintes núcleos: A Escola da Música (Dinamizada pela Sociedade Musical Capricho Setubalense), o Centro de Documentação, Estudo e Promoção da Canção Popular Portuguesa (Desenvolvido pela Associação José Afonso), o Espaço das Artes (Conduzido pela Artiset – Associação de Artistas Plásticos de Setúbal), o Gabinete da Juventude e o Centro de Documentação Local (Dinamizado pelo Centro de Estudos Bocageanos).
O dia já ia longo, o sol já desaparecia vagarosamente por detrás da misteriosa Serra da Arrábida (a "Serra-Mãe", no dizer do poeta Sebastião da Gama), onde o monge eremita e poeta Frei Agostinho da Cruz terminou os seus dias, escrevendo sobre ela este poema, com que encerramos esta crónica de um dia enriquecedor na cidade de Elmano Sadino.
Alta Serra deserta, donde vejo / As águas do Oceano de uma banda, / E de outra, já salgadas, as do Tejo. / Aquela saudade, que me manda / Lágrimas derramar em toda a parte, / Que fará nesta, saudosa e branda? / Daqui mais saudoso o Sol se parte; / Daqui muito mais claro, mais dourado, / Pelos montes, nascendo, se reparte...