terça-feira, abril 01, 2014

O Atrium pelo percurso da estátua de D. José I, da Fundição de Cima até à Praça do Comércio

Cerca de 239 anos depois, o Atrium, guiado pelo Albano, percorreu o trajecto da zorra que transportou a estátua do “clementíssimo soberano”, destinada a perpetuar o reconhecimento pelo “grande número de sábias e justíssimas providencias para a manutenção e allivio do fiel povo desta capital”, por ele praticadas.
Foi numa manhã enevoada, do dia 9 de Março, que nos encontrámos na escadaria do Panteão de Stª Engrácia, para reconstituir o trajecto que se iniciou no longínquo dia 22 de Maio de 1775 e que terminou quatro dias depois na Praça do Comércio.  Foram então três dias e meio de festejos populares que acompanharam a estátua do “clementíssimo soberano”, sempre coberta por uma cortina de tecido onde figurava um letreiro dourado e em latim, que dizia A nuvem não cobre o Sol.
Iniciámos o nosso percurso na Sala do Gesso da então “Fundição de Cima” (mandada construir por D. João V, e assim chamada, por oposição à “Fundição de Baixo”, do tempo de D. Manuel I, existente no local onde hoje se situa o Museu Militar), local onde foi fundida a real estátua pelo Brigadeiro Bartolomeu da Costa, numa liga metálica, no tempo incrível de 7 minutos. Nesta Sala do Gesso pudemos apreciar o modelo em gesso e em tamanho natural da estátua do D. José I, da autoria de Machado de Castro (nesta sala também existem outros modelos de estátuas executadas posteriormente, tais como a do Duque de Saldanha, do Dr. Sousa Martins, de Afonso de Albuquerque e do Marquês Sá da Bandeira, entre outras).
A partir daqui seguimos o trilho da zorra, desta vez sabiamente conduzida pelo Albano (que substituiu por umas horas o Brigadeiro Bartolomeu), no seu percurso de 4 dias, devidamente assinalado pela pintura do chão de ferraduras de cavalo, mas curiosamente (?) pintadas às avessas… (talvez uma premonição do pintor, que já adivinhava um país a andar para trás…).
A primeira paragem foi no actual Museu Militar, onde tivemos oportunidade de ver uma réplica da zorra (desenhada pelo próprio Brigadeiro) que transportou a estátua. As suas dimensões foram por todos devidamente apreciadas, e por momentos imaginámos e esforço hercúleo dos homens que a puxaram, pois a real figura não poderia ser deslocada por bestas…
Passámos depois pela Ermida do Senhor da Boa Nova (uma construção barroca de 1748, que hoje funciona como igreja ortodoxa), meio enterrada devido à construção da Rua do Museu da Artilharia, feita propositadamente, à custa de algumas demolições, para possibilitar a passagem da zorra.
No nosso percurso, tivemos a oportunidade de apreciar o edifício da Alfândega de Lisboa, um edifício pombalino construído em 1766, para as funções de Celeiro Público (daí a designação do local por Terreiro do Trigo). Dispunha de um cais privativo, já desaparecido, para carga e descarga dos cereais, sendo de destacar a sua fachada sul, com contrafortes de grande solidez, para suportar a pressão das toneladas de cereais aí desembarcadas.
Dada a sua actualidade, não resistimos de transcrever, mantendo o português da época (ainda muito distante do nosso pobre (des)acordo ortográfico…), a placa existente na sua fachada.
JOSEPH I, AUGUSTO INVICTO PIO
REY E PAY CLEMENTISSIMO
DOS SEUS VASSALLOS
PARA SEGURAR A ABUNDANCIA DE PAO
AOS MORADORES DA SUA NOBRE E LEAL CIDADE DE LISBOA
E DESTERRAR DELA A IMPIEDADE DOS MONOPOLIOS
DEBAIXO DA INSPECÇAO DO SENADO DA CAMARA
SENDO PRESIDENTE DELLE PAULO DE CARVALHO DE MENDONÇA
MANDOU EDIFICAR DESDE OS FUNDAMENTOS ESTE CELLEIRO PÚBLICO
 ANNO  M DCCLXVI
Deixando para trás a proverbial “impiedade dos monopólios”, (que pelos vistos já vem de muito longe), chegámos ao Chafariz D’el Rei, que terá sido o primeiro chafariz público na cidade de Lisboa. A sua origem remonta a tempos muçulmanos, e é a partir do reinado de D. Dinis que passa a ser designado por Chafariz d’El Rei.
Aproveita as excelentes águas da encosta de Alfama e chegou a ter nove bicas em funcionamento. Cada bica era exclusiva de um grupo social, não esquecendo os mareantes, e o abastecimento das naus.
Passamos seguidamente pelo Campo das Cebolas, Praça da Ribeira Velha antes do terramoto de 1755. A sua actual designação deve-se ao facto de a cebola passar a ser o produto aqui descarregado e armazenado em grande quantidade. Uma importante referência desta praça é a Casa dos Bicos, onde hoje está instalada a Fundação José Saramago. O edifício original, que serviu, entre muitas outras funções, de sede à Associação do Comércio Marítimo da Índia, foi mandado construir em 1523, por Brás de Albuquerque, filho de Afonso de Albuquerque, aquando do seu regresso de uma viagem a Itália.
A última paragem antes do objectivo final da caminhada, foi a Igreja da Conceição Velha. Ela resultou da reconstrução, após o terramoto de 1755, da antiga Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia de Lisboa, sede da primeira Misericórdia do país, e que constituía o segundo maior templo da Lisboa manuelina, só ultrapassado pelo Mosteiro dos Jerónimos. A sua bela fachada é uma das melhores estruturas do manuelino, sobrevivente ao grande sismo.
E finalmente chegámos ao final da caminhada. Não foram os quatro dias que a zorra demorou, mas foram quase quatro horas bem aproveitadas para conhecermos melhor a nossa cidade e a nossa história.
Recuemos então ao dia 27 de Maio de 1775, era um sábado. Sob a orientação directa do Brigadeiro Bartolomeu, a difícil operação da colocação da estátua em cima do pedestal está terminada. Os esforçados trabalhadores executantes da tarefa viram recompensados o seu empenho, pois “mandou o Marquez de Pombal gratificar todo o pessoal ali empregado, quer do arsenal, quer das obras públicas, com a importância correspondente a três dias de jornal, e dando o juiz do povo e da Casa dos Vinte e Quatro uma lauta merenda aos trabalhadores que lidaram com os sarilhos.
Precisamente dez dias depois, na tarde do dia 6 de Junho, perante a família real, o corpo diplomático, o clero, a corte, os tribunais, a tropa, o povo, foi então inaugurado solenemente o monumento que estava coberto com uma grande cortina de tecido de seda carmezim, sendo esta descerrada pelo Marquês de Pombal e por seu filho, o Conde de Oeiras, então Presidente do Senado da Câmara, que puxaram os cordões.
Rezam as crónicas que, tal como hoje, estas inaugurações são momentos de grande exaltação patriótica, bem aproveitados pelos poderes instituídos para afirmarem a sua grandeza, em troco de festa, comida e bebida para distrair o povo… Deliciemo-nos com estas pérolas literárias que descrevem as festividades havidas: “…À noite houve luminárias geraes, opera lyrica ao teatro real, a que assistiu o rei e a côrte, e grande sarau na Casa dos Vinte e Quatro… a iluminação da praça do Commércio, feita por mais de 28000 lumes, não contando com os lustres que pendiam nas arcadas, oferecia um aspecto surpreendente… Nos dias 7 e 8 fôram as deslumbrantes festas realizadas pelo senado e pela Casa dos Vinte e Quatro na praça do Commercio, em que figuravam oito carros alegóricos, havendo danças, musicas, iluminação e vistosos fogos de artificio… O monarca, associando-se ao público regozijo, decretou amnistia geral… No dia 7, a seguir aos festejos na praça do Commercio, ofereceu o Senado uma esplendida função na casa da alfândega, constando de serenata em italiano, ceia e baile… ”.   
Mudam-se os tempos… mas certos tiques do poder instalado não mudam. Vão-se perpetuando ao longo das épocas…
E foi diante da estátua de El Rei, curiosamente rodeada de material destinado a uma passagem de modelos da Moda Lisboa, que a caminhada terminou. Foi um mergulho na nossa história, na história desta nossa bela cidade de Lisboa, que nos enriqueceu e que também nos abriu o apetite para um lauto almoço que se iria concretizar nos restaurantes da baixa pombalina.