domingo, maio 05, 2013

O Atrium revisitou Fernando Pessoa no Teatro da Barraca

As luzes apagam-se. As personagens emergem da escuridão lentamente, são elas Dionísia e Fernando, a avó e o seu neto.
Dionísia de Seabra Pessoa é a avó paterna “louca” de Fernando Pessoa, que morre a 6 de Setembro de 1907, tinha então o poeta 19 anos. Parece não haver dúvida que a lembrança da avó Dionísia acompanhou Fernando Pessoa pela vida fora, atormentando-o ao ponto de a questão da loucura ser uma presença constante em grande parte da sua obra.  

             Minha loucura, outros que me a tomem
             Com o que nela ia.
             Sem a loucura que é um homem
             Mais que a besta sadia,
             Cadáver adiado que procria?

A procura de um sentido para a vida, a ânsia de aprofundar o conhecimento do seu “eu” e de desvendar os mistérios do Universo, aliadas à sua extraordinária inteligência, levaram Pessoa a uma constante perturbação, que se reflectia até na sua saúde física. 
        Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
        Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
        E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode
                                                                               haver tantos!
        Génio? Neste momento
        Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
        E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
        Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
        Não, não creio em mim.
        Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas
                                                                                   certezas!
Iniciou-se nas ciências ocultas, na Cabala, na Alquimia, militou na Maçonaria, nos Templários, viveu as práticas exotéricas da Fraternidade Rosa-Cruz e as experiências mediúnicas, dedicou-se profundamente à Astrologia.   
 
        A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,
        Deve trazer uma loucura maior que os espaços
        Entre as almas e entre as estrelas.

Nesta peça “Menino de sua Avó”, com um belo texto da autoria de Armando Nascimento Rosa, a que fomos assistir no passado dia 19 de Abril, há o encontro mágico entre o poeta e a avó Dionísia, em vida e mesmo após as suas mortes, num ambiente pessoano, irreal, fantástico onde a loucura dá o braço à genialidade de Fernando Pessoa. O resultado é um espectáculo de grande qualidade, que nos prendeu do princípio ao fim, apesar da sua apreciável extensão. Para concluir, vamos dar mais uma vez a voz ao poeta: 
 
        Transbordou.
        Mal sei como conduzir-me na vida
        Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
        Se ao menos endoidecesse deveras!
        Mas não: é este estar-entre,
        Este quase,
        Este pode ser que…,
        Isto.
        Um internado num manicómio é, ao menos alguém,
        Eu sou um internado num manicómio sem, manicómio,…

Uma última nota para a situação difícil que atravessa A Barraca, fruto da política criminosa de um governo que só dispõe de dinheiro para financiar os bancos deixando completamente ao abandono a criação artística, e que está expressa dramaticamente no texto da Maria do Céu Guerra, intitulado “Não sei se este é o meu último espectáculo”, que integra o programa que acompanha a apresentação da peça.
Daqui fazemos o nosso apelo para que cada um, dentro das suas possibilidades, lute pela defesa do nosso património artístico e em particular neste caso, pela sobrevivência do teatro em Portugal.