quinta-feira, outubro 17, 2013

De como a capital do Arinto iluminou uma manhã que teimava em nascer cinzenta

Foi no passado sábado, dia 12 de Outubro, que um grupo de 12 atriunistas rumou manhã cedo até à histórica vila de Bucelas. O objectivo primeiro era uma visita ao Museu do Vinho e da Vinha, inaugurado no passado mês de Julho e que se encontra instalado num edifício ligado à tradição vitivinícola desta região.
Datado do final do século XIX, o edifício foi, em tempos, a residência de um dos mais importantes e antigos produtores de vinho de Bucelas, a família Camilo Alves. O imóvel integrava a habitação senhorial, uma adega e o respectivo armazém de vinhos, espaços que foram recuperados e adaptados à nova função museológica.
Durante a visita guiada, tivemos o privilégio de contar com a colaboração do nosso companheiro José Cid, que foi precisamente o autor do projecto de recuperação e concepção deste museu.
Este é de facto um museu vivo, com alma e, como era inevitável, deixámo-nos embriagar pela presença daquela bebida “composta de humor líquido e luz” (Galileu Galilei). Foi uma viagem pelo tempo, desde o séc. XIX onde se assistiu à expansão da vinha no nosso país, passando pelos tempos dramáticos da crise causada pelo aparecimento do oídio e filoxera, pelas diversas medidas institucionais tendentes a introduzir regras no desenvolvimento do sector vitivinícola e desembocando no aparecimento e crescimento da firma “João Camilo Alves, Ld.ª”.
Como um símbolo cultural da nossa sociedade, o papel do vinho tem evoluído ao longo do tempo, mudando de uma importante fonte de nutrição para um complemento cultural e de convívio.
Numerosas são as ligações desta preciosa bebida à produção artística, bem expressas num interessante painel existente no museu. Recordemos o nosso Fernando Pessoa quando escrevia que “boa é a vida, mas melhor é o vinho”, ou a citação de A. Fleming, mais científica como não poderia deixar de ser, “a penicilina cura os homens… mas o vinho é que os torna felizes…”.
E para rematar a narrativa desta visita da parte da manhã, que curiosamente (ou talvez não…) se tornou luminosa nesta capital do Arinto, nada melhor que recordar alguns dos muitos poemas dedicados ao vinho, da autoria de Omar Khayyam, poeta, filósofo, matemático e astrónomo persa, nascido em 1048 e que viveu a sua juventude na cidade de Samarcanda (onde travámos “conhecimento” com o poeta, na nossa recente viagem ao Uzbequistão, numa grata descoberta que recordamos com um carinho pleno de cumplicidades…).

Bebe o teu vinho, ele te devolverá a mocidade,
a divina estação das rosas, da vida eterna,
dos amigos sinceros. Bebe, e desfruta
o instante fugidio que é a tua vida.
 
Só de nome conhecemos a felicidade.
O nosso melhor amigo é o vinho;
Afaga a única que te é fiel: a ânfora,
cheia do sangue das vinhas.
 
Do meu túmulo virá um tal perfume de vinho
que embriagará quem por lá passar,
e uma tal serenidade vai pairar ali,
que os amantes não quererão se afastar.
 
No seguimento da visita, tivemos a oportunidade de conhecer o Núcleo Interpretativo das Linhas de Torres, instalado no museu.
Aí fomos recebidos pela sua responsável, que nos fez uma apresentação do projecto Rota Histórica das Linhas de Torres, que congrega os municípios de Arruda dos Vinhos, Loures, Mafra, Sobral de Monte Agraço, Torres Vedras e Vila Franca de Xira, e que visa promover, de modo interactivo, o conhecimento sobre a Guerra Peninsular, com o objectivo de preservar a história, a cultura e a memória colectiva de um povo que, no início do século XIX, em esforço de guerra, se uniu em prol de uma causa comum, erguendo um sistema de fortificações militares para garantir a defesa da cidade de Lisboa.
Foi um diálogo interessante, focando a complexidade das Linhas Defensivas de Lisboa, o papel das populações locais na construção das fortificações de campo e no aprovisionamento de víveres, as estradas militares e o esforço de guerra para fazer frente ao invasor.
Com a aproximação da hora do almoço, e com a fome a apertar, o próximo destino foi o restaurante Retiro do Raposo, no qual apreciámos devidamente um suculento Pote Atabafado. Para fazer água na boca dos faltosos, aqui vai a receita: carne de porco, courgette, cenoura, beringela e batata. O pote, individual, é tapado com massa folhada, vai ao forno e come-se directamente dele.
E como não poderia deixar de ser, tudo regado com um bom Arinto de Bucelas!
Já com o corpo e a alma mais aconchegados, dirigimo-nos à parte da visita que era surpresa, e que se veio a revelar de um interesse extraordinário. Tratou-se de uma visita guiada à Igreja de Nossa Senhora da Purificação ou Igreja Matriz de Bucelas.
Esta igreja está localizada no centro do núcleo urbano, e fica situada no cimo de uma pequena elevação. É um notável templo quinhentista, digno representante da arquitectura religiosa gótica, renascentista e maneirista, cuja riqueza é a decoração barroca do seu interior e a talha utilizada na capela-mor.
Possui uma bonita torre-campanário de dois andares encimada por uma cruz de ferro. Nos quatro ângulos, completam o conjunto, quatro coruchéus assentes em bases quadradas. Existe ainda uma peça raríssima, um grupo escultórico, possivelmente do séc. XVI, representando a Santíssima Trindade, a Mãe de Cristo e os doze Apóstolos na manhã de Pentecostes. Esta preciosidade, uma relíquia da nossa escultura gótica, teria pertencido à Capela do Espirito Santo.
Foi um excelente final para esta escapadela até à simpática vila de Bucelas, que deixou em todos nós o desejo de lá voltar brevemente.