quarta-feira, junho 03, 2020

25 Abril 74 - as memórias da Celeste


MOMENTOS DO DIA 25 de abril de 1974
6:45h: Toca o despertador, viro-me para o outro lado.
7:00h:Toca novamente, dou um salto da cama, pés no chão e corrida para o banho.
7:15h: Corrida para a cozinha, faço a torrada e o cafezinho, que engulo rapidamente.
7.20h: Saio de casa em grande aceleração para não perder o comboio. Uf! Apanhei-o!
8.20h: Já em Paço D’Arcos. Tudo tranquilo, manhã normal.
Lá vou eu a caminho da estrada de Paço D’Arcos com esperança de apanhar boleia até à fábrica, a ACUMULADORES AUTOSIL, SA, onde trabalhava na contabilidade, mas a boleia não passou. Como sempre, chegava em cima da hora.
8:59h: Cheguei, piquei o ponto e reparei que o porteiro se levantou e se dirigiu a mim. Estranhei, não era costume, ele nunca saía do seu lugar e só dizia “bom dia”.
Quando chegou ao pé de mim disse baixinho: “Sabe o que aconteceu?” (pensei que tinha morrido alguém) “há tropas em Lisboa, isto vai mudar”.
Enquanto o ouvia, na minha mente, imaginei cenas de um filme com o título, “QUANDO MENOS SE ESPERAR, VAI HAVER UMA REVOLUÇÃO”.
Na verdade, esta era a mensagem que o colega e amigo Gomes me dizia, sempre que nos encontrávamos e eu não percebia como isso poderia acontecer um dia.
Nesse mesmo instante pensei: “ESTÁ A ACONTECER O QUE O GOMES ME DIZIA”
Fui, rapidamente, ter com os meus colegas que estavam sentadinhos à secretária e começámos a cochichar, para que o chefe não dessa conta. Éramos jovens: tínhamos entre 20/25 anos e uma colega mais velha de 35.
O chefe estava no gabinete envidraçado, mesmo à nossa frente. Havia que ter respeitinho. Estávamos ansiosos para saber o que se passava.
Liguei para o colega Gomes que trabalhava noutra secção, ele não atendeu. Mas, fiquei a saber que não tinha chegado ainda à fábrica. “Claro que não podia chegar!”, pensei eu. Ele estava na REVOLUÇÃO, que sabia que ia acontecer e pela qual tanto ANSIAVA”.
Na Contabilidade havia uma janela que dava para a oficina. Lá se encontravam os fresadores e verdadeiros artistas. Era de onde o chefe deles os vigiava. Nesse dia, o chefe chegou mais tarde e nós aproveitámos para espreitar para os colegas da oficina (PC e UDP), que nos diziam adeus e sorriam sem darem nas vistas. Por esta atitude, deu para confirmar que alguma coisa estava a acontecer.
O nosso chefe estava no seu posto, sempre a receber e a fazer chamadas, e nós sem espaço de manobra para sair e ir falar com outros.
Continua após a história do rádio...

“História do rádio clandestino:
Era uma vez um pequeno rádio que tocava na Secção de Contabilidade quando o chefe não estava. Assim que nós nos apercebíamos da chegada iminente do chefe, pois se ouvia o abrir e fechar da porta da rua, e os seus passos a subir as escadas, o rádio era calado.
Mas, um dia o chefe chegou sorrateiramente. Fomos apanhados. O pior não foi isso, o pior foi termos ficado proibidos de o ter e de o ouvir.
Rapidamente, arranjámos solução e o rádio ficou escondido. Quando sabíamos que o chefe estava ausente havia música todo o dia! Entretanto, ficámos mais atentos e nunca mais fomos surpreendidos.”

Pelas 9:30, o nosso chefe saiu da gaiola, veio ter connosco e perguntou: “quem tem o rádio?”. Nós ficámos caladinhos. Ele insistiu: “sei que o têm, liguem-no”!
O dono do rádio ainda hesitou, mas imediatamente o colocou em cima da secretária.
Ficámos atentos às notícias… e o chefe também!
A papelada estava arrumada em cima da secretária, nada se fazia e a agitação era grande. O rádio era o centro das atenções. À medida que as notícias eram emitidas, os colegas mais entendidos em política iam dando alguns esclarecimentos.
A euforia ia aumentada e quando passavam as canções proibidas, era sempre um momento de júbilo e de muita agitação. No meio da exultação, aparece a colega Luciete, que era a escrivã e também o elo com os colegas Luís e José António. O primeiro, encontrava-se na Guiné, e o José António estava em Angola. A Luciete acenava-nos com um aerograma, que tinha recebido, do Luís.
Éramos quatro mulheres na secção: Eu, Adelaide, Elvira e Luciete. Mas, a Adelaide não foi trabalhar, morava em Lisboa e foi avisada por um vizinho. Fomos as três para uma sala sem gente, para sabermos as notícias que vinham da guerra.
Não me recordo o que dizia o conteúdo do aerograma, mas recordo o final que era sempre igual “Respondam rápido, SAUDADES”. Enquanto os colegas ouviam o rádio, já se respondia ao Luís.
A Luciete escrevia, e eu e a Elvira íamos à sala onde estavam os colegas e o rádio, a fim de nos atualizarmos com os noticiários. Isto, para que nada faltasse na mensagem, para o Luís, que era de ESPERANÇA.
Embora estivéssemos apreensivos pois nada de concreto se sabia, tivemos o cuidado de não criar falsas expectativas.
O aerograma seguiu nesse mesmo dia e outros se seguiram na semana seguinte. Os seguintes, com mais notícias, mais confiantes e com mais esperança de que, em breve, os nossos colegas pudessem voltar para a nossa companhia, na fábrica.
Pelas 10:00, o pessoal da oficina e da fábrica já andava de um lado para o outro e agrupavam-se. Os sindicalistas andavam em grande azáfama. O nosso Chefe mandou-nos para casa pelas 10:30. E, alertou-nos para estarmos atentos às notícias. Ainda ficámos “a pôr a escrita em dia”. De seguida, fomos falar com outros colegas, de outros departamentos. Era quinta-feira, não me recordo até que horas fiquei na fábrica ou se fui trabalhar na sexta-feira ou na segunda-feira seguinte.
O resto do dia passei-o em casa, a ouvir rádio e em contacto com os meus pais que, na altura, estavam em Serpa.
O dia foi vivido com um frenesim de emoções, entre as quais a ESPERANÇA, o SENTIMENTO de (RE) ENCONTRO e a VONTADE de TUDO MUDAR.
Celeste Martins Carrasco, em Abril de 2020