segunda-feira, maio 11, 2020

25 Abril 74 - as memórias do Zé Carlos

O dia 25 de Abril de 1974 começou muito cedo para mim. Pouco depois da meia-noite um telefonema tirou-me da cama com uma frase curta: “Costa Pereira, o dia é hoje. Arranca já para o quartel!”.
A mensagem não me surpreendeu, pois como alferes miliciano colocado no quartel do GCTA (Grupo de Companhias de Trem Auto), integrava um movimento de oficiais milicianos que em reuniões clandestinas, com representantes de todas as regiões militares, acompanhava, embora separadamente, os preparativos para o golpe militar que estavam a ser desenvolvidos pelos oficiais do quadro.
A nossa missão no GCTA, um quartel não operacional mas importante no que respeita a meios de transporte, era não permitir que fosse dado qualquer apoio logístico a tropas fiéis ao regime. Assim passámos o dia a vigiar os movimentos do comandante e do segundo-comandante ao mesmo tempo que, via rádio, íamos escutando as comunicações militares e acompanhando o desenrolar das operações.
Houve uma situação nesse dia que retrata bem o ambiente que se vivia na altura, ainda com algum medo, muitas incertezas e algumas reviravoltas de última hora.
Ao fim da tarde, animados com as notícias que iam chegando, eu e um camarada, o alferes Figueiredo, lembrámo-nos que na secretaria do quartel existiam as fichas dos pides, com identificação e morada, uma vez que os membros das forças militares e militarizadas tiravam ali no GCTA a carta de condução. Fomos ao chaveiro sacar as chaves e fotocopiámos essas fichas, enviando-as por um estafeta para a Cova da Moura, já ocupada pelo MFA.
Passado algum tempo, fomos chamados ao gabinete do comandante, alguém tinha bufado, e ameaçados com prisão por violação de instalações, sonegação de informação, etc. etc.. Claro que não nos preocupámos muito pois estávamos confiantes que o golpe iria triunfar, o que se veio a verificar.
Ironicamente, no final da noite, numa reunião de oficiais o comandante, agora mais mansinho, além de nos procurar convencer do seu amor indefectível pelos ideais democráticos, achou por bem apresentar as desculpas públicas ao sucedido comigo e com o Figueiredo, alegando o seu nervosismo na altura, fruto da situação, e contando umas histórias, meio tolas, para mostrar que ele também não gostava da PIDE… Claro que ele e o segundo-comandante passada uma semana já estavam nas suas casas, devidamente saneados.
O resto do dia decorreu sem incidentes de maior, até ao momento em que, já na madrugada do dia 26, na RTP é apresentada a Junta de Salvação Nacional e é indicado como seu presidente o Spínola, contrariando o anteriormente acordado com o MFA, que escolhera Costa Gomes para essas funções.
Houve um certo reboliço na sala de oficiais, com uns tipos mais excitados a dizerem-se atraiçoados e a quererem logo marchar para a Cova da Moura, a pedir explicações, mas que foram prontamente acalmados por outros que asseguravam: “deixem lá que o tipo não vai estar lá por muito tempo…”, o que veio de facto a acontecer.
E lá recolhemos às casernas para tentar dormir um bocado, o que se mostrou difícil pois fomos massacrados por alguns telefonemas anónimos, com ameaças de bombas nas instalações do quartel, que nunca se confirmaram, mas que nos puseram os nervos em franja – era esse afinal o seu objectivo.
E seguiram-se alguns dias agitados e noites mal dormidas, vivendo acontecimentos e situações complicadas, fruto do momento revolucionário então existente, e que dariam para encher muitas páginas de texto.
Para concluir, direi que este foi um dia único na minha vida, dos mais felizes, pelo momento histórico que tive o privilégio de viver por dentro, e por sentir que tínhamos conseguido concretizar a aspiração de muitas gerações de portugueses que, durante longos anos, sofreram e lutaram pela Liberdade do nosso Povo.
José Carlos, em 25 de Abril 2020