quarta-feira, dezembro 20, 2017

Um fim-de-semana perfeito, descobrindo o Turismo Industrial de S. João da Madeira e mergulhando nos azulejos de Ovar, a sua cidade-museu


Quando no sábado de manhã arrancámos da Av. do Colégio Militar, em Carnide, um manto de escuridão ainda cobria uma Lisboa adormecida. Pudera, o relógio tinha acabado de bater as 7 horas da madrugada…
A viagem até S. João da Madeira decorreu sem nada de importante a assinalar, e pelas 11 horas estávamos a desembarcar do autocarro da Barraqueiro, no parque de estacionamento em frente da Torre da Oliva, um ex-libris da cidade de S. João da Madeira.
Este edifício emblemático, que hoje é o centro de um inovador projecto de turismo industrial, foi nos anos 50 e 60 do século passado, a referência para os milhares de operários que diariamente se dirigiam para os seus postos de trabalho, no complexo industrial da Oliva, fundado pelo industrial António de Oliveira.
Decorria o ano de 1948 e a inauguração da fábrica das famosas máquinas de costura (quem não teve uma na sua casa… ou em casa dos seus pais), marcava o início de um período de crescimento notável da Oliva, tendo-se construído então os edifícios modernistas da época, dos quais se destacava esta Torre, que no alto, sobre um relógio, exibia orgulhosamente a palavra OLIVA.
E agora, quase 70 anos depois, aqui chegámos, não para iniciar o nosso turno de laboração na fábrica, mas para realizar uma visita de descoberta de um património que nos surpreendeu pela sua qualidade e riqueza histórica.
As boas vindas foram dadas no edifício do Welcome Center, onde se procedeu também à distribuição de elegantes batas brancas a todos os visitantes, que emprestaram um ar distinto ao grupo. O Atrium ficou literalmente de ponto em branco…

E assim aprimorados lá fomos para a nossa primeira visita, o Museu da Chapelaria. Este museu inaugurado em Junho de 2005 transportou-nos para o mundo da Chapelaria, nas suas diversas áreas, desde a produção, comercialização, hábitos sociais e impacto económico, constituindo uma referência na história de uma indústria que marcou profundamente a vida e a história deste concelho.
Foi uma visita muito interessante, guiada de forma exemplar e dinâmica que nos permitiu um contacto directo com as diversas fases da fabricação dos chapéus, desde a produção da matéria-prima até ao acabamento final do produto.
Já no fim fomos presenteados com um extra, a exposição temporária intitulada “Por favor, não coma os chapéus” da autoria de Maor Zabar, um designer de chapéus israelita cujas peças se destacam pela originalidade. Pássaros, insectos, plantas carnívoras, contos tradicionais, comida e criaturas marinhas são algumas das temáticas das suas colecções que emprestam uma faceta realista à qual não falta uma pincelada de humor.
E foi com manifesta boa disposição, causada pelas obras de Maor Zabar, que rumámos à Fábrica dos Sentidos, o restaurante localizado no edifício do Museu da Chapelaria, onde nos deliciámos com um excelente almoço de comida tradicional portuguesa.

Já com os estômagos bem aconchegados dirigimo-nos ao ponto seguinte da visita, o Núcleo de Arte da Oliva.
Situado na chamada Zona 2 da antiga empresa metalúrgica, este núcleo possui um amplo espaço destinado ao acolhimento de indústrias criativas e culturais e também a um Centro de Arte Contemporânea.
Ao sair do restaurante, por um feliz acaso, o nosso grupo passou a contar com a companhia do Presidente da Câmara Municipal de S. João da Madeira, Jorge Sequeira, antigo colega e amigo da nossa companheira Fernanda Moniz.
Este Centro de Arte Contemporânea, criado em 2013 no âmbito do projecto de reconversão da fábrica e fundição da Oliva, conta com uma valiosa colecção de arte doada por um casal de S. João da Madeira, Norlinda e José Lima, que é uma das maiores coleções de arte contemporânea privadas de Portugal e que inclui, entre muitas outras, obras de Andy Warhol, Paula Rego, Álvaro Lapa, Vieira da Silva, Graça Morais e Júlio Resende.
No início da visita, que foi superiormente guiada pelo artista plástico portuense José Rosinhas, tivemos a agradável surpresa de contar com a presença do próprio colecionador José Lima, que ao ter conhecimento da nossa presença, fez questão de, num gesto de extrema simpatia, vir dar as boas-vindas ao grupo.
Para além da mostra do casal Norlinda e José Lima, uma referência à exposição “In and Out of Africa”, que apresenta mais de 90 obras de arte, pinturas, desenhos, esculturas, cerâmicas e instalações de mais de 50 artistas, selecionadas de acordo com as antigas rotas atlânticas de escravos. O seu objetivo é demonstrar ricas formas de expressão de artistas de Arte Bruta africanos, afro-americanos, haitianos, brasileiros e cubanos e recordar que o continente africano foi outrora o berço da Civilização.
Foi uma interessante e enriquecedora visita pelos vários núcleos temáticos em que se agrupam as obras em exposição.










Por sugestão do Presidente Jorge Sequeira, ainda nos foi dada a possibilidade de visitar as instalações onde se situavam os fornos para a cozedura das banheiras Oliva.
Dirigimo-nos de seguida para o último ponto da nossa visita, o Museu do Calçado que pretende dar a conhecer a história da produção do calçado, desde a oficina até à grande fábrica, a evolução do sapato ao longo do tempo, mostrando também o lado afectivo de sapatos verdadeiros, doados por dezenas de figuras públicas e destacando, ao mesmo tempo, o seu potencial enquanto objecto de arte. 
Foi uma visita guiada que se iniciou junto aos sapatos de cristal da Cinderela e que percorreu as cinco áreas em que o museu está dividido: o fabrico tradicional; a produção industrial; a evolução de calçado no tempo, desde a pré-história ao final do século XX; os sapatos produzidos pelos designers de todo o mundo e as histórias de sapatos de notáveis; e por fim as obras de artistas que tiveram no sapato a sua inspiração.
No decurso da visita, pudemos apreciar a exposição temporária “Os assombrosos sapatos de Kobi Levi”, um original designer de calçado israelita que aqui expõe as suas irreverentes criações, concretizadas em mais de cinco dezenas de sapatos.
O nosso dia em S. João da Madeira tinha chegado ao fim, e foi com um sentimento satisfação pelo que vimos, e pelo modo acolhedor como fomos recebidos, que nos despedimos, com o desejo de aqui voltar para poder conhecer as fábricas que estão em laboração, de calçado e de chapelaria, sem esquecer a lendária Viarco, cujos lápis foram fiéis companheiros na nossa adolescência.
Percorridos os cerca de 15 quilómetros que nos separavam de Ovar, chegámos ao nosso destino, o Hotel Meia-Lua, e depois de um curto descanso deambulámos pelas ruas quase desertas, em busca de um local para uma refeição ligeira, já que ao almoço nos “banqueteámos como abades”...para utilizar uma eloquente e adequada expressão queirosiana…   
Depois de uma noite retemperadora, o dia soalheiro convidava a uma jornada luminosa pela Cidade Museu do Azulejo, um verdadeiro museu a céu aberto, com os pedaços de cerâmica colorida a decorar as fachadas das casas, das igrejas, dos monumentos e até em tapetes estendidos pelos passeios (aqui um pequeno parêntesis para lembrar a origem da palavra azulejo, que deriva do termo árabe “Al zulej”, que significa pequena pedra lisa e polida).
Foi uma visita guiada pela “Rua do Azulejo”, um projecto criado pela Câmara, destinado a mostrar aos visitantes este rico património, e que nos levou a percorrer principalmente o centro histórica de Ovar, passando pelas ruas Dr. José Falcão, Cândido dos Reis, Heliodoro Salgado, 31 de janeiro, Luís de Camões e Alexandre Herculano.
Ao longo do percurso, que foi conduzido pela nossa guia de um modo dinâmico e didático, fomos tomando conhecimento das várias técnicas de fabrico do azulejo (a estampilhagem semi-industrial, a estampilhagem industrial, o relevo, etc.), da diversidade dos padrões decorativos utilizados (os motivos geométricos e florais, o estilo Arte Nova a influência pombalina) e da sua evolução cromática, desde o tradicional azul aos tons polícromos.

Recorde-se que até à primeira metade do século XIX os azulejos de fachada eram pouco utilizados em Portugal, e foi apenas a partir desse período que se assistiu à proliferação da sua utilização, como revestimento e decoração das fachadas dos edifícios civis, constituindo então um meio de distinção social dos respectivos proprietários.
Aqui em Ovar, aquele que se supõe ter sido um dos primeiros painéis de azulejos utilizado numa fachada, terá sido produzido no ano de 1825, com pintura à mão livre e estampilhagem.
A visita prosseguiu com uma interessante experiência no Atelier de Conservação e Restauro do Azulejo, situado na Escola de Artes e Ofícios de Ovar, na qual tivemos a oportunidade de revelar os nossos dotes artísticos, na estampagem de azulejos polícromos, utilizando as cores amarelo e azul.
Este momento foi o culminar de um processo de aprendizagem sobre aqueles pedaços de cerâmica, cuja importância no nosso país está bem traduzida nesta afirmação de José Meco, prestigiado historiador da arte do azulejo: “Embora a origem do azulejo não seja portuguesa, em nenhum outro país do continente europeu como em Portugal este material recebeu um tratamento tão expressivo e original, bem adaptado aos vários condicionalismos económicos, sociais e culturais específicos, nem foi utilizado de maneira tão complexa e dilatada, com fins que transcendem largamente um mero papel decorativo.».
Ainda antes do almoço, visitámos a Igreja de Válega, cuja construção se iniciou em 1746, mas que as obras arrastaram-se por mais de um século, continuando a receber intervenções até ao século XX.
De estilo barroco, este templo surpreendeu-nos pela imponente fachada principal toda revestida a azulejos representando cenas bíblicas e religiosas, feitos na Fábrica Aleluia de Aveiro já na segunda metade do século XX.
E a hora já ia adiantada quando nos dirigimos, já um pouco esfomeados, para o Restaurante “Gaby – A Minha Casa”, onde nos deliciámos com uma excelente vitela no forno, cozinhada superiormente pela D. Gabriela.
Num apontamento cultural, que fica sempre bem numa evocação gastronómica, diremos que a vitela pertencia à raça Marinhoa, cujas referências mais antigas remontam ao final do século XIX, e que está relacionada com as marinhas da região costeira da Beira Litoral, compreendendo os concelhos de Aveiro, Ílhavo, Vagos, Ovar, Murtosa e Estarreja. São animais alimentados com pastagens e forragens da Região o que, para além da qualidade intrínseca da carne, lhes confere excelentes atributos organoléticos.
No final do repasto registou-se uma verdadeira corrida ao famoso pão-de-ló de Ovar, que rapidamente esgotou o stock da D. Gabriela, havendo mesmo viajantes que, fruto de algum açambarcamento, ficaram na triste situação de regressarem a Lisboa de mãos a abanar.
Como balanço final poderá dizer-se que foi um fim-de-semana bem preenchido, que em S. João da Madeira, nos possibilitou a descoberta de um ambicioso projecto museológico, surpreendente pela sua qualidade, e em Ovar nos levou a percorrer as galerias a céu aberto, de um rico e original museu.
A juntar a tudo isto, ainda tivemos o ensejo de mostrar os nossos talentos na estampagem de um azulejo, que em breve nos será enviado, constituindo uma recordação viva desta enriquecedora visita.