quarta-feira, maio 27, 2020

25 Abril 74 - as memórias do Rúben Menezes


Olhei para esta folha em branco e pensei, quantas, quantas histórias devem existir deste dia. Quantos milhões de pessoas viveram este dia como sendo o dia das suas vidas? Quantas outras o passaram indiferentes, sem o compreenderem. Conheci e conheço, infelizmente, muitos da minha geração que ainda hoje vivem nessa indiferença, nessa ignorância de tanta alegria. Dessa imensa alegria que, actualmente, no quadro de uma geografia e de uma história tão diferente desses tempos, ainda hoje sentimos e festejamos com profunda alegria.
É verdade, foi grande a alegria, foi enorme o primeiro 1º de Maio, foi muito “bonita a festa pá”, foi mesmo muito bonita. Libertaram-se tantas grades, libertaram-se tantos gritos sufocados, acabaram-se tantas guerras, libertaram-se tantas angústias, tanto sofrimento reprimido, tanto sonho escondido, tanta injustiça, tanto amor adiado, tantas, tantas coisas que se libertaram como tantos novos voos se esvoaçaram e, livres, percorreram espaços sem fim.
São pois muitas e variadíssimas as histórias e as formas como esse dia da liberdade foi vivido. Muitas são empolgantes e cheias de heroísmo. Muitas fizeram-se de intervenção militar directa, outras fizeram-se do salto para o abismo da rua quando se abriram as portas das prisões fascistas. Outras fizeram-se em viagens de retorno de longos exílios e muitas de viola na mão e de canções desprendidas pela primeira vez nas avenidas e nas rádios.
Outras, são histórias simples mas vividas numa explosão de alegria que de repente se “desarolhou” desamparadamente e tão inesperadamente que deu aso a atitudes descontroladas, ignorantes do que se deveria fazer porque não sabíamos o que fazer. Não fomos educados assim nessa liberdade do nada. Uma liberdade “desconfinada” como se diria hoje.
Foi um pouco assim o 25 de Abril para mim. Tinha 19 anos e, de manhã, logo muito cedo o meu pai chegou do Mercado Municipal, da sua rotina diária e disse-me “passa-se qualquer coisa lá fora…”. O lá fora era o Continente, nós vivíamos no Faial, nos Açores.
É claro que já estávamos alerta por causa do 16 de Março mas… não esperávamos que viesse assim tão rápido. Naquela altura, tinha por companhia mais assídua um reduzido grupo de amigos, todos mais velhos e mais politizados, com quem partilhava a passagem dos dias em jogos de cartas, muitas discussões politicas, muitas trocas de livros, muita troca de informação, muita leitura de jornais da oposição, de folhetos, e de muitas cartas e comunicados chegados clandestinamente. Mas, também, muita caça submarina à mistura, muita petiscada, muita diversão e, claro, alguma conspiração, como por exemplo, por altura do Congresso da Oposição Democrática em Aveiro em 1973.
Com a notícia do meu pai, despachei-me logo para ir de encontro a esses amigos. Mal saí à rua, dois passos não eram dados e encontro outro amigo que me diz “é pá, eu sei que tu és dessas coisas e sabes, deves querer saber uma coisa. Acabei de receber um telefonema de Lisboa a dizer que está a haver uma Revolução e que as tropas estão todas na rua em Lisboa…”. Acho que já não ouvi o fim da conversa. Corri para casa de um dos tais amigos e, tanto ou quanto me lembro, só saí de lá com eles altas horas da noite quando as coisas já estavam mais confirmadas e nós, perdidos e com grandes bebedeiras, de verdade e de alegria, corremos pela rua principal da cidade da Horta e perante o espanto de alguns transeuntes e de pessoas que se assomavam às janelas, cantávamos, muito desafinadamente com certeza, as músicas do Zeca e dávamos vivas à LIBERDADE!
Apenas o registo de um episódio caricato. Quando íamos nessa corrida desnorteada, deparámos com um polícia parado a fazer guarda em frente ao Banco de Portugal. Não sei bem porquê mas parámos todos, de repente, em frente do coitado que nunca nos tinha feito mal nenhum. Então um de nós, sempre o mais desbragado nas suas atitudes, chegou junto dele e perguntou-lhe o que estava ali a fazer. O pobre diabo, com a voz tremida, disse que não sabia. Então esse tal amigo agarrou-lhe no chapéu, enterrou-o pela cabeça abaixo e ordenou-lhe que fosse para casa porque não estava ali a fazer a nada. O pobre desgraçado lá foi qual triste figura, sem refilar e de passos trôpegos rua fora.
Depois o resto foi como se prevê. Dias e meses cheios, sempre muitos preenchidos de tanta coisa por fazer. No dia 2 do mês de Setembro do mesmo ano, embarquei para Lisboa e mergulhei, em definitivo, numa nova realidade de vida e de longa intervenção politica…
…um dia ouvi a música do Zé Mário Branco “…houve aqui alguém que se enganou”… e percebi que a festa tinha-se acabado pá.
Mas, sabem, há duas palavras que perduram em mim quando penso no 25 de Abril de 1974 e que só soam bem, ditas em conjunto, LIBERDADE E ALEGRIA!
Que privilégio!
Rúben Menezes, em Abril 2020