segunda-feira, outubro 27, 2014

E quarenta anos e alguns meses depois, regressámos ao histórico Largo do Carmo…

Os gritos ensurdecedores da multidão que se acotovelava no largo (Fascismo nunca mais! … Assassino!… Liberdade!...) chegavam através dos vidros das janelas fechadas, até à sala do 1º andar do Quartel da GNR do Carmo, onde sua Excelência, o Presidente do Conselho de Ministros, se tinha refugiado na sequência das movimentações militares, registadas pelos seus eficientes serviços de informações. A escolha do refúgio não podia ter sido melhor… A capacidade defensiva do quartel era mínima, as hipóteses de escapar eram inexistentes.
Numa sala à parte, separado dos seus ministros que o tinham acompanhado na retirada, Marcello Caetano encontrava-se, como sempre tinha estado nos seus últimos tempos, dramaticamente só. E foi assim que ouviu as rajadas de metralhadora disparadas pelas tropas da EPC, sob as ordens de Salgueiro Maia.   
Alguns projécteis foram-se alojar, por efeito de ricochete, numa poltrona da sala da biblioteca e nalguns livros que estavam nos armários. Marcello percebeu que a batalha estava perdida e aceita dialogar com os que o cercavam para tentar garantir a sua segurança física. Era a única coisa que lhe restava… A chaimite Bula começara já a aquecer os motores…
O resto da história é do conhecimento de todos. O poder passaria, pelo menos formal e temporariamente, para o velho general do monóculo, que ainda tentou deter os ventos que sopravam, mas acabou, ele também, numa aflita e atrapalhada retirada para a vizinha Espanha, que vivia ainda os últimos tempos da tenebrosa era franquista, a bordo de um helicóptero da Força Aérea Portuguesa.
E foi então que, no passado sábado, 18 de Outubro, o Atrium rumou manhã cedo até ao Largo do Carmo. O objectivo era o Núcleo Museológico da GNR, existente no histórico Quartel do Carmo. À nossa espera estava o capitão Tiago Lopes, que nos acompanhou durante toda a visita. De referir que o nosso companheiro José Cid, coautor do projecto do Núcleo de parceria com o seu primo Jorge Cid, também esteve presente, o que permitiu um enriquecimento da visita, com informações sobre a génese do projecto, a sua evolução e os seus condicionalismos.
O espaço museológico está organizado de um modo interessante, mostrando a evolução desta instituição através do tempo, desde os seus “antepassados”, os Quadrilheiros, passando pela Guarda Municipal até chegar à actual Guarda Nacional Republicana. As suas diversas missões também estão representadas, a vigilância de fronteiras, o controlo de veículos e mercadorias, a investigação laboratorial, etc. Apesar do ambiente atraente e da simpatia do Cap. Tiago Lopes, alguns de nós não conseguiram evitar que ao seu pensamento viessem as recordações da repressão exercida por esta instituição sobre os trabalhadores e a população em geral, nos tempos negros da ditadura. A imagem de Catarina Eufémia, assassinada por um soldado da GNR, por momentos projectou-se nas vitrinas, frente aos nossos olhos.
Mas, sem branquear a história nem esquecer o passado, “esta” GNR do Cap. Tiago não é de facto a mesma que a “outra”, a que constituía o aparelho repressivo no qual assentava a ditadura, que aqui terminou os seus dias, simbolicamente encurralada no bojo de uma chaimite, em 25 de Abril de 1974.
Tivemos também a oportunidade de conhecer as salas onde se desenrolaram os factos mais relevantes daquele dia, inteiro e limpo, na bela imagem da Sophia, bem como visitar a varanda existente nas traseiras do quartel, na qual se desfruta uma vista esplêndida sobre a cidade de Lisboa.
Ao sair para o Largo do Carmo, a calma era perfeita, grupos de turistas deliciavam-se com a luz acolhedora da cidade, uns tirando as habituais fotos, outros sentados nas esplanadas bebendo refrescos. Já nada restava da multidão que gritava por Liberdade nem dos jovens soldados que a custo a continham no passeio fronteiriço ao quartel. A fita do tempo inexoravelmente tinha seguido o seu curso, e alguns dos sonhos que então aqui tinham nascido, nas gargantas dos populares, desfizeram-se como castelos de areia.
Mas não vamos estragar esta crónica com pessimismos exagerados. Nem tudo se perdeu e, apesar de tudo, valeu a pena! E que diabo, não podemos desistir. Há por aí ainda muitos outros Largos do Carmo para construir…
Para alguns dos visitantes, a manhã soalheira terminou da melhor maneira: na histórica Cervejaria Trindade, em amena cavaqueira, frente ao clássico bife com ovo a cavalo.