quarta-feira, novembro 06, 2013

E do Xisto se fez Festa…

… E foi a festa dos olhos, na paisagem ao mesmo tempo dura e acolhedora da serra da Lousã, foi a festa dos paladares, com a “bigorna” de bacalhau o pão de centeio as azeitonas o generoso vinho, foi a festa dos cheiros das ervas aromáticas, foi a festa do convívio entre amigos e, acima de tudo, a festa de conhecer gente acolhedora e corajosa que com a sua atitude e o seu trabalho, mantém vivas estas Aldeias do Xisto, verdadeiro tesouro nacional.
O dia amanheceu claro, o céu limpo fazia adivinhar as condições ideais para a jornada do passado dia 26 de Outubro, que se iniciou em Sete Rios, a bordo do autocarro da Barraqueiro.
A viagem até à primeira Aldeia do Xisto da Ferraria de São João decorreu tranquilamente.
Um passeio descontraído pela aldeia mostrou-nos, num primeiro momento, uma povoação com um património maioritariamente muito bem conservado e recuperado, que contrastava com uma sensação de desertificação. Não se via vivalma… Lá para meio da caminhada apareceram alguns habitantes, e tivemos até oportunidade de entabular uma conversa com uma moradora, que nos elucidou sobre alguns aspectos da vida da aldeia nomeadamente o facto de grande parte das casas serem de proprietários não residentes, que só as utilizam em fins-de-semana e em períodos de férias.
De salientar as excelentes instalações de apoio aos praticantes de BTT, que por aqui afluem em grande quantidade.
A segunda paragem realizou-se na Aldeia do Xisto do Casal de S. Simão, que se eleva numa paisagem dominada pelas serras circundantes, e que desfruta de uma vista panorâmica, dispondo ainda de uma praia fluvial junto à impressionante Fraga de S. Simão.
Depressa ficámos rendidos à beleza da paisagem envolvente e também à qualidade e bom gosto das habitações, quase todas excelentemente recuperadas. Os nossos olhos, e as objectivas das máquinas fotográficas, ficaram presos à beleza das janelas ornamentadas com as decorativas cortinas bordadas.
Esta aldeia mostrou-se mais animada, e tivemos mesmo a oportunidade de visitar uma habitação, por gentileza do seu proprietário. Uma decoração acolhedora e sobretudo uma espectacular varanda virada a Sul, com uma vista deslumbrante, completada com um forno, um grelhador e uma grande mesa de refeições, deixou-nos a imaginar lautas iguarias degustadas tranquilamente em semelhante cenário, tendo como pano de fundo o canto das aves e, ao longe, murmúrio das águas do Alge, transpondo as profundas fragas. 
Nem de propósito, pois a fome já ia apertando, seguiu-se o almoço no restaurante Varandas do Casal, existente na própria aldeia. Foi uma animada refeição que teve como fundo a Tiborna de Bacalhau (“Bigorna” na versão caseira, atribuída por uma nossa Coordenadora…), o bom vinho alentejano e um excelente pão de centeio cozido em forno de lenha.
Após o repasto pusemo-nos a caminho do último objectivo do dia, a vila da Lousã.
Chegados à vila, ao deixar o autocarro, quando nos encaminhávamos para o Hotel Mélia, instalado no Palácio dos Salazares, algo de transcendente se passou… era como se estivéssemos a assistir a um filme, mas não, era mesmo real...
Das portas do palácio, em desordenada correria, surgiram de repente umas dezenas de soldados franceses, com as fardas do exército napoleónico, gritando ordens e contra-ordens em total confusão… “merde, les anglais et les portugais sont dejá lá”, “nous devons sortir immédiatement”, “aller chercher les chevaux et les chariots” “dépêchez-vous vite, vite”…
Vindas das ruas adjacentes, algumas carruagens estacionaram junto da porta do palácio, enquanto a tropa apeada descia apressadamente a rua Viscondessa do Espinhal. É então que surge, rodeado pelos emplumados oficiais do seu Estado-Maior, o marechal Massena, que se destacava da confusão geral, com o seu ar altivo e aparentemente calmo. Rapidamente entra para a primeira carruagem que dispara a galope pela rua abaixo, abrindo caminho entre a soldadesca, logo seguida das restantes, onde se tinham instalado os outros oficiais.
Num abrir e fechar de olhos tudo voltou ao sossego e à normalidade. A nossa imaginação acabava de recrear um episódio verdadeiro, passado no dia 16 de Março de 1811, quando as tropas anglo-portuguesas desferiram um inesperado ataque nocturno, na margem esquerda do rio Ceira, e avançaram rapidamente na direcção da Lousã. O marechal Massena, que se preparava para jantar no Palácio dos Salazares, ocupado pelas tropas invasoras, ao receber a notícia, fugiu precipitadamente. Pouco depois, o Duque de Wellington entrava triunfante na vila, e sentando-se à mesa que Massena abandonara, pôde saborear com redobrado gosto o jantar que tinha sido preparado para o inimigo.
Já refeitos desta viagem no tempo e na história, fomos presenteados com um merecido repouso nos confortáveis quartos do Mélia, já livres da ocupação francesa, a que se seguiu uma deambulação pelas ruas da Lousã.
Chamou-nos a atenção as imponentes casas senhoriais que existem na vila bem como a sua majestosa igreja Matriz (completamente saqueada aquando das invasões francesas), que são testemunho de uma notoriedade perdida. Já com foral no reinado de D. Afonso II, foi porém no século XVIII que a Lousã mais prosperou, passando de uma modesta e incaracterística vila a uma florescente povoação, com ruas ladeadas de novas edificações de bom traçado, onde viviam as famílias nobres. A criação local da indústria do papel, o Engenho de Papel da Lousã, mais tarde Companhia do Papel do Prado, esteve na origem dessa prosperidade.
O jantar leve foi realizado à medida do estômago de cada viajante e a noite chegou convidando para um sono reparador.
O domingo amanheceu claro e sem sinal de chuva, e após o pequeno-almoço rumámos a caminho do primeiro objectivo do dia, a Aldeia do Xisto do Candal. O percurso pela N236 é por si só um regalo para os olhos dos viajantes (excluindo os daqueles que padecem de vertigens…), com curvas e contracurvas, ingremes desfiladeiros escondendo as linhas de água, encostas a perder de verdes. A Natureza mostrando-se na sua beleza exuberante.
Candal apareceu-nos numa curva da estrada, aninhada na Serra da Lousã, espreguiçando-se numa colina voltada a Sul.
De imediato fomos invadidos por uma sensação de tranquilidade, a brisa fresca, o ar límpido, a vegetação, as sombras, a ribeira, o som das águas caindo da represa. Depressa fomos tentados a subir as ruas inclinadas, esquecendo o cansaço que já se ia acumulando, procurando descobrir os melhores ângulos para apreciar aquele cenário que se oferecia aos nossos olhos e aos nossos sentidos.
A visita concluiu-se na Loja da Aldeia, onde os viajantes tiveram oportunidade de comprar diversos produtos locais, o artesanato, o queijo, as ervas aromáticas, e de participar numa interessante conversa com a responsável pela Loja, uma ex-professora que veio viver para Candal há cerca de 5 anos.
Voltámos então à estrada para viver um acontecimento histórico, que a seguir relataremos. O objectivo era a Aldeia do Xisto de Cerdeira alcandorada na encosta da serra voltada a sul e poente, com uma esplêndida vista para um extenso vale.
O difícil acesso à aldeia, está agora mais facilitado, com a inauguração, há cerca de 2 meses, de uma nova estrada asfaltada, embora bastante sinuosa e estreita. O acontecimento histórico foi o facto de ter sido o nosso autocarro o primeiro a chegar a Cerdeira. Nunca antes qualquer veículo pesado tinha chegado lá, apenas viaturas ligeiras e de todo-terreno.
Esta aldeia é um local que inspira magia. No início do caminho uma pequena ponte e uma fonte, que dá as boas vindas aos visitantes oferecendo-lhes a sua água fresca. Logo a seguir, ao caminhar pelo chão de ardósia, começamos a distinguir um punhado de casas que espreitam por entre a folhagem, e temos a sensação de que a aldeia se funde com a natureza numa harmonia perfeita.
Atravessamos as primeiras casas e deparamos com o atelier de Kerstin Thomas, uma alemã que vive na Cerdeira desde 1988, e que faz trabalhos na área da escultura em madeira. Aqui fomos recebidos com a simpatia e a hospitalidade da Kerstin que se prontificou a guiar-nos numa visita pela aldeia.
De destacar as obras de reconstrução da Casa das Artes, ponto de apoio para as diversas iniciativas culturais que se realizam em Cerdeira. Refira-se o encontro anual denominado “Elementos à Solta”, para o qual são convidados artistas para residir, expôr, trabalhar ao vivo e conviver com o público em cenário natural. Este evento já vai na sua 8ª edição, e teve lugar este ano nos dias 13 a 15 de Julho.
Foi já com alguma saudade que deixámos Cerdeira e nos dirigimos ao autocarro para iniciar a viagem que nos levaria ao almoço no restaurante do Museu da Chanfana.
Após o repasto, e para finalizar esta jornada pelas terras da Lousã, uma última visita à Aldeia do Xisto de Gondramaz.
Esta é uma aldeia muito bem recuperada, praticamente todas as casas se encontram em excelente estado, oferecendo um conjunto muito interessante. No entanto, talvez pelo cansaço ou ainda enfeitiçados pela magia da Cerdeira, pela beleza tranquila de Candal ou pela exuberância do Casal de S. Simão, esta última visita não nos despertou o entusiasmo das anteriores.
O regresso a Lisboa estava perto. A Festa do Xisto tinha chegado ao fim. O verso do cantor poeta nunca soou tão verdadeiro: “foi bonita a festa, pá”.