quarta-feira, novembro 20, 2024

Um magusto com sol, castanhas, bom vinhito e boa disposição

 

Foi no passado domingo, dia 17, que o Atrium se encontrou nas Boiças, em casa da Marina e do Zé Carlos, para festejar mais um magusto, a festa popular, uma das mais antigas tradições da cultura portuguesa que celebra a chegada do outono e constitui um momento de alegre convívio à roda da fogueira, bebendo vinho e apreciando as indispensáveis castanhas assadas.

Recorde-se que a celebração do magusto está associada a uma lenda, a qual dizia que um soldado romano de nome Martinho de Tours (mais tarde conhecido como São Martinho), num dia de temporal, ao passar a cavalo por um mendigo quase nu e cheio de frio, terá dada a este, metade da sua capa que cortou com a espada. Diz a lenda que, neste preciso momento, parou de chover e o sol brilhou, derivando daí a expressão: "Verão de São Martinho".

Mas para este magusto do Atrium não foram precisos nem velhinhos friorentos, nem soldados romanos, para o sol brilhar… O convívio foi bem descontraído e alegre, a comida foi excelente - um leitão e um bacalhau servidos por um restaurante da região - as bebidas variadas - tinto, rosé e a indispensável água-pé - e as sobremesas ricas - fruta biológica apanhada directamente da árvore e um docíssimo bolo dedicado ao tema da Amizade - tudo isto para além das castanhas devidamente assadas no fogo.

Houve ainda um renhido concurso de quadras populares alusivas ao São Martinho e um passatempo apresentado pelo Zé Carlos, intitulado “Onde estavas na fotografia”, que permitiu pôr à prova a memória das/os atriunistas, e ao mesmo tempo evocar a recordação de alguns bons momentos que vivemos nas iniciativas do Atrium.

E foi já ao cair da noite que o magusto terminou, com o conforto de um dia bem passado, onde o sol e a amizade estiveram presentes para nos aquecer… isso para além do bom vinhito…. Claro!

Para o ano há mais, com certeza.














segunda-feira, novembro 11, 2024

O Atrium no centenário de Amílcar Cabral

Foi no vetusto teatro São Luiz que assistimos, no passado dia 6 de novembro, ao concerto comemorativo do Centenário de Amílcar Cabral, o revolucionário africano que idealizou a libertação dos povos sob dominação colonial e prosseguiu militar e diplomaticamente esse projecto, até ao seu assassinato em janeiro de 1973, na cidade de Conacri, por agentes a soldo do colonialismo português. 
Amílcar Cabral nasceu em 1924, em Bafatá, uma pequena cidade da Guiné-Bissau, filho de pais cabo-verdianos. A sua infância decorreu numa sociedade onde o racismo e a opressão colonial eram constantes, gerando um ambiente de lutas e resistências.
Desde jovem destacou-se como um líder nato, e a sua inteligência e carisma tornaram-no uma figura respeitada por todos. Em 1945, rumou Portugal para estudar agronomia, mas logo percebeu que a sua verdadeira missão era a luta pela independência do seu país e de toda a África. Em 1956 funda o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que se tornaria a principal organização revolucionária da região. Com a sua liderança, o PAIGC mobilizou milhares de pessoas numa luta armada contra o colonialismo português, que durou mais de uma década.
Outro fator de destaque na sua actuação, foi o nível de conscientização política e humana que defendia, na luta pela libertação dos povos africanos, tendo por exemplo acabado com o papel secundário destinado às mulheres, mostrando aos militantes a importância delas no processo revolucionário. Muitas foram comandantes, comissárias e combatentes na frente da guerra.
Para suplantar a colonização acreditava que seria necessário o fortalecimento, a conscientização, e a defesa da cultura africana. Considerava mesmo que estas tarefas eram muito mais importantes, no primeiro momento, do que a independência política. Não adiantaria expulsar os colonizadores se o imaginário da população continuasse com os seus referenciais.
Essa ideia estava bem presente nesta reflexão de Amílcar Cabral, feita em 1978:
“Toda a educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As línguas africanas estão proibidas nas escolas.
O homem branco é sempre apresentado como um ser superior e o africano como um ser inferior. Os conquistadores coloniais são descritos como santos e heróis. As crianças adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem a temer o homem branco e a ter vergonha de serem africanos […]”.
Além de ser um líder revolucionário e um intelectual, Amílcar Cabral era também um poeta talentoso, tendo escrito diversos poemas sobre a luta pela independência e sobre a cultura africana, que são considerados verdadeiras obras-primas. Em jeito de homenagem, ao homem e ao poeta, aqui deixamos o seu poema intitulado “A minha poesia sou eu”.

 … Não, Poesia:

Não te escondas nas grutas de meu ser,
não fujas à Vida.
Quebra as grades invisíveis da minha prisão,
abre de par em par as portas do meu ser
— sai…
Sai para a luta (a vida é luta)
os homens lá fora chamam por ti,
e tu, Poesia és também um Homem.
Ama as Poesias de todo o Mundo,
— ama os Homens
Solta teus poemas para todas as raças,
para todas as coisas.
Confunde-te comigo…
Vai, Poesia:
Toma os meus braços para abraçares o Mundo,
dá-me os teus braços para que abrace a Vida.
A minha Poesia sou eu.

(Amílcar Cabral, em “revista Seara Nova”. 1946)

Resta-nos acrescentar que o concerto contou com a presença da Orquestra Metropolitana de Lisboa, com Tito Paris, Lura, Cremilda Medina e IIolanda Pereira, que nos conduziram, durante uma hora e meia, numa extraordinária viagem pela rica cultura musical de Cabo Verde, que culminou com o inevitável “Sodade”, cantado em uníssono pelos artistas e pelo público que encheu o São Luiz.

Para concluir esta simples crónica de uma noite especial, reproduzimos mais um poema de Amílcar Cabral, que foi cantado no espectáculo, pela Cremilda Medina.

 Regresso

Mamãe Velha, venha ouvir comigo
o bater da chuva lá no seu portão.
É um bater de amigo
que vibra dentro do meu coração.

A chuva amiga, Mamãe Velha, a chuva,
que há tanto tempo não batia assim…
Ouvi dizer que a Cidade-Velha,
— a ilha toda —
Em poucos dias já virou jardim…
Dizem que o campo se cobriu de verde,
da cor mais bela, porque é a cor da esp´rança.
Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde.
— É a tempestade que virou bonança…

Venha comigo, Mamãe Velha, venha,
recobre a força e chegue-se ao portão.
A chuva amiga já falou mantenha
e bate dentro do meu coração!









segunda-feira, outubro 28, 2024

De como os três pastorinhos passaram a quatro e desceram até à cidade…

Imaginem que a Nossa Senhora não tinha aparecido na Cova da Iria, no cimo da já célebre azinheira, mas sim em Lisboa, no vetusto Parque Mayer, mais exactamente no recauchutado Teatro Variedades…

Imaginem que a Senhora não tinha falado em português de Portugal (única maneira de ser compreendida pelos pequenos pastorinhos…) mas sim em espanhol…

Agora imaginem que a sua audiência não tinham sido a Lúcia dos Santos, o Francisco Marto e a Jacinta Marto, mas sim a Maria Matos, a Beatriz Costa, o António Silva e o Vasco Santana…

Imaginem ainda que os eleitos para receber a divina mensagem, afinal não eram a Maria Matos, a Beatriz Costa, o António Silva e o Vasco Santana, mas eram antes a Sílvia Rizzo, a Sissi Martins, o Manuel Marques e o Ivo Alexandre…

Por fim imaginem que o propósito da Senhora não era a conversão da Rússia, (não desta de Putin, que não tem ponta por onde se lhe pegue, mas da outra, a de Lenine), e em vez disso a sua intenção era o assassinato de Hitler (intenção bem mais acertada, diga-se de passagem).

Pois tudo isto aconteceu realmente no passado domingo, dia 27 de outubro, e pôde ser testemunhado pelos atriunistas que tiveram o privilégio de estar presentes no sítio certo e à hora certa, ou seja, na plateia do Teatro Variedades pelas 19 horas!

O texto e a encenação para esta aventura espetacular são da autoria de Ricardo Neves-Neves, que num registo de imaginação humorística, juntou os percursos de Nossa Senhora, Hitler e quatro figuras míticas do cinema português dos anos 30 e 40.

Foram 55 minutos de boas representações, de alegres momentos musicais, extraídos dos temas de filmes dos anos 30 e 40, e de um humor inteligente e original.

O nome da peça: “Entraria nesta Sala”.


O Variedades antes

O Variedades agora

Adenda: Em complemento desta actividade, realizámos, no passado dia 24 de outubro, uma visita à exposição fotográfica “O Parque Mayer visto por Lauro António”, patente no Teatro Variedades. A visita foi guiada pelo Frederico Corado, filho de Lauro António, e permitiu que recordássemos o Parque tal como alguns de nós o conhecemos, com a sua vida intensa. Lá estavam os restaurantes, os cafés, as esplanadas, o barbeiro, o fotógrafo, o snooker, as farturas, as barracas de tirinhos, as bancas de livros, o guarda-roupa.

Ao olharmos este espaço hoje transformado num imenso parque automóvel, onde sobrevivem dois teatros recuperados, é natural a sensação de alguma tristeza sobre o futuro deste espaço que já foi um ícone da vida artística lisboeta.   

terça-feira, outubro 22, 2024

No Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, um reencontro com a nossa história recente de resistência à ditadura

 “…. Fecharam os telhais. Com os prenúncios de outono, as primeiras chuvas encheram de frémitos o lodaçal negro dos esteiros, e o vento agreste abriu buracos nos trapos dos garotos, num arrepio de águas e de corpos. Também sobre os fornos e engenhos perpassou lufada desoladora, que não deixava o fumo erguer-se para o alto. Que indústria como aquela queria vento, é certo; mas sol também. Vento para enxugar e sol para calcinar − sentenciavam os mestres. Mas o sol andava baixo: não calcinava o tijolo, nem as carnes juvenis da malta...

Assim principia o romance Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, livro que o autor dedicou “para os filhos dos homens que nunca foram meninos”.

Escolhemos iniciar este texto sobre a nossa visita, no passado dia 13 de outubro, ao Museu do Neo-Realismo, por se tratar de uma obra e de um autor, bem representativos dessa corrente artística, que nas áreas da literatura, pintura, música e cinema, durante décadas lutou contra a censura, contra a repressão policial, contra as injustiças e contra o obscurantismo, contribuindo assim para a sementeira que haveria de despontar no 25 de Abril de 1974.

A visita, orientada e enriquecida pela disponibilidade do nosso anfitrião Paulo Silva, desenrolou-se pelos cinco núcleos existentes no Museu: “António 50 anos de humor”, “Amândio Silva - Um pintor a reencontrar”, “A Família Humana – Paralelos e Contrapontos”, “A coragem da gota de água é que ousa cair no deserto” e “Escrever é lutar. Escritores neorrealistas e a Revolução de Abril”.

Começámos pela mostra dos trabalhos de António, que ao longo da sua carreira de 50 anos, tem sido uma voz incisiva na crítica social, política e cultural da sociedade portuguesa, tornando-se uma figura ímpar no panorama do Cartoon nacional e internacional. Recordemos a polémica com o New Times, que em abril de 2019 censurou um cartoon seu, que retratava Donald Trump, na altura presidente dos EUA, e Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel e que reproduzimos aqui, juntamente com outros cartoons do autor.





O núcleo seguinte, dedicado ao pintor Amândio Silva, natural da cidade do Porto, onde nasceu em abril de 1923, foi para muitos de nós uma surpreendente descoberta de um artista polifacetado, que dedicou a sua vida a diversas actividades. Pintura, gravura, tapeçaria, ensino artístico, artes gráficas, fotografia, montanhismo e colecionismo.

Esta exposição, organizada em cinco núcleos figurativos (Douro, Porto, Paisagem, Quotidiano, Retrato e Infância), incide em especial na sua obra produzida entre as décadas de 1940 e 1960, onde o traço neorrealista se evidencia, e inclui trabalhos que vão desde a pintura, o desenho, o guache, a aguarela, a cerâmica e obra gráfica.

Nela transparece um sentido de humanismo, expressando o compromisso social neorrealista, seja retratando o duro trabalho da vindima no Alto Douro ou a faina fluvial junto à sua cidade Invicta. Discípulo de Dordio Gomes na Escola Superior de Belas Artes, integrou o grupo “Os Independentes” a par de Júlio Resende, Nadir Afonso e Júlio Pomar, entre outros.

Finalizemos, recordando uma afirmação de Amândio Silva sobre o seu percurso de vida: “Cada vez me convenço mais de que sou apenas pintor. A minha aparente polivalência deve-se ao facto de aceitar qualquer nova expressão cultural com o entusiasmo que sempre dedico a todas as manifestações do espírito”.




Seguimos para o terceiro núcleo, “A Família Humana – Paralelos e Contrapontos”, uma colecção fotográfica com cerca de oitocentas imagens, de mais de 350 fotógrafos de variadas nacionalidades, que percorrem a aventura humana na sua viagem do nascimento à velhice e morte, passando pela escola, pelo amor, pelo trabalho e lazer, pela política e pela guerra. A exposição está organizada em grupos de fotografias que apresentam semelhanças ou contrastes entre si.



No quarto núcleo, cujo título é inspirado num provérbio chinês - “A coragem da gota de água é que ousa cair no deserto” – podemos apreciar obras de Júlio Pomar, Lima de Freitas, Mário Dionísio, Nuno San-Payo, Querubim Lapa, Margarida Tengarrinha e Maria Keil, entre outros, obras que são o retrato de uma época na qual a expressão artística assumiu a sua luta contra a censura e a perseguição política e social, impostas pelo regime ditatorial de então.

As obras e a luta destes artistas mostram-nos que de facto a arte é como uma gota de água que cai no deserto e que, parecendo não ter um efeito imediato, nos faz refletir e nos desperta para as transformações sociais e políticas necessárias.













Por fim chegámos ao quinto e último núcleo, “Escrever é lutar. Escritores neorrealistas e a Revolução de Abril”, onde é abordada a relação entre os escritores neorrealistas e a Revolução dos Cravos.

Um dos atributos mais marcantes do Neorrealismo na literatura é o foco na realidade social, expondo as injustiças sociais, a pobreza e a luta pela sobrevivência. As personagens são gente comum, que enfrenta as dificuldades diárias da vida das classes trabalhadoras. Para que a mensagem social fosse compreendida por vastas camadas da população, os autores utilizavam uma linguagem simples e acessível.

Recorde-se que, no contexto português, o Neorrealismo começa a ganhar força na década de 1940, em plena ditadura do Estado Novo, refletindo a realidade social que se vivia ao mesmo tempo que se tornou numa forma de resistência cultural e de denúncia do pesadelo fascista.

Aqui pudemos apreciar fotografias e notícias, discursos em reuniões, poemas, crónicas, cartas e outros registos de autores como, Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Mário Sacramento, Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Alexandre Cabral, Manuel da Fonseca, Armindo Rodrigues, Sidónio Muralha, Fernando Namora, Antunes da Silva, entre outros.

Esta foi uma visita muito interessante que nos conduziu numa viagem pelo período histórico da resistência, que a nossa geração viveu intensamente, e cuja memória não podemos deixar que se apague.

Para finalizar, numa simples homenagem a todos os artistas do movimento neorrealista, transcrevemos um texto de Alves Redol do seu livro Gaibéus.

“… Até mesmo os momentos de descanso mantêm o trabalhador nesta condição: “Cada homem na eira não passa de um volante, uma correia ou um braço da ciranda. Quando o apito soar, o volante achará os raios, a correia e o braço da ciranda adormecerão. Os homens irão ajudar à carga e pensar na vida. Nos corpos de alguns correrá o frio das sezões; e os cérebros, libertos da vertigem comunicativa das máquinas, encontrarão pensamentos. Mas os seus pensamentos não sabem ainda acalentar fadigas. Nas poisadas, a vida torna-se mais negra. De novo se acham homens, e gostariam de ficar máquinas para sempre - as máquinas não pensam”.





Nota final: Com a alma cheia, havia que alimentar o corpo, pois a manhã já ia avançada. E tudo terminou numa animada refeição no restaurante “O Comboio “, previamente reservado pelas nossas diligentes Coordenadoras.