“…. Fecharam os telhais. Com os prenúncios de outono, as
primeiras chuvas encheram de frémitos o lodaçal negro dos esteiros, e o vento
agreste abriu buracos nos trapos dos garotos, num arrepio de águas e de corpos.
Também sobre os fornos e engenhos perpassou lufada desoladora, que não deixava
o fumo erguer-se para o alto. Que indústria como aquela queria vento, é certo;
mas sol também. Vento para enxugar e sol para calcinar − sentenciavam os
mestres. Mas o sol andava baixo: não calcinava o tijolo, nem as carnes juvenis
da malta...”
Assim principia o romance Esteiros, de Soeiro Pereira
Gomes, livro que o autor dedicou “para os filhos dos homens que nunca foram
meninos”.
Escolhemos iniciar este texto sobre a nossa visita, no
passado dia 13 de outubro, ao Museu do Neo-Realismo, por se tratar de uma obra
e de um autor, bem representativos dessa corrente artística, que nas áreas da
literatura, pintura, música e cinema, durante décadas lutou contra a censura,
contra a repressão policial, contra as injustiças e contra o obscurantismo,
contribuindo assim para a sementeira que haveria de despontar no 25 de Abril de
1974.
A visita, orientada e enriquecida pela disponibilidade do
nosso anfitrião Paulo Silva, desenrolou-se pelos cinco núcleos existentes no
Museu: “António 50 anos de humor”, “Amândio Silva - Um pintor a reencontrar”, “A
Família Humana – Paralelos e Contrapontos”, “A coragem da gota de água é que
ousa cair no deserto” e “Escrever é lutar. Escritores neorrealistas e a
Revolução de Abril”.
Começámos pela mostra dos trabalhos de António, que ao longo
da sua carreira de 50 anos, tem sido uma voz incisiva na crítica social,
política e cultural da sociedade portuguesa, tornando-se uma figura ímpar no
panorama do Cartoon nacional e internacional. Recordemos a polémica com o New
Times, que em abril de 2019 censurou um cartoon seu, que retratava Donald
Trump, na altura presidente dos EUA, e Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro
de Israel e que reproduzimos aqui, juntamente com outros cartoons do autor.
O núcleo seguinte, dedicado ao pintor Amândio Silva, natural
da cidade do Porto, onde nasceu em abril de 1923, foi para muitos de nós uma surpreendente
descoberta de um artista polifacetado, que dedicou a sua vida a diversas
actividades. Pintura, gravura, tapeçaria, ensino artístico, artes gráficas,
fotografia, montanhismo e colecionismo.
Esta exposição, organizada em cinco núcleos figurativos
(Douro, Porto, Paisagem, Quotidiano, Retrato e Infância), incide em especial na
sua obra produzida entre as décadas de 1940 e 1960, onde o traço neorrealista
se evidencia, e inclui trabalhos que vão desde a pintura, o desenho, o guache,
a aguarela, a cerâmica e obra gráfica.
Nela transparece um sentido de humanismo, expressando o
compromisso social neorrealista, seja retratando o duro trabalho da vindima no
Alto Douro ou a faina fluvial junto à sua cidade Invicta. Discípulo de Dordio
Gomes na Escola Superior de Belas Artes, integrou o grupo “Os Independentes” a
par de Júlio Resende, Nadir Afonso e Júlio Pomar, entre outros.
Finalizemos, recordando uma afirmação de Amândio Silva sobre
o seu percurso de vida: “Cada vez me convenço mais de que sou apenas pintor.
A minha aparente polivalência deve-se ao facto de aceitar qualquer nova
expressão cultural com o entusiasmo que sempre dedico a todas as manifestações
do espírito”.
Seguimos para o terceiro núcleo, “A Família Humana –
Paralelos e Contrapontos”, uma colecção fotográfica com cerca de oitocentas
imagens, de mais de 350 fotógrafos de variadas nacionalidades, que percorrem a aventura
humana na sua viagem do nascimento à velhice e morte, passando pela escola,
pelo amor, pelo trabalho e lazer, pela política e pela guerra. A exposição está
organizada em grupos de fotografias que apresentam semelhanças ou contrastes
entre si.
No quarto núcleo, cujo título é inspirado num provérbio
chinês - “A coragem da gota de água é que ousa cair no deserto” – podemos
apreciar obras de Júlio Pomar, Lima de Freitas, Mário Dionísio, Nuno San-Payo,
Querubim Lapa, Margarida Tengarrinha e Maria Keil, entre outros, obras que são
o retrato de uma época na qual a expressão artística assumiu a sua luta contra
a censura e a perseguição política e social, impostas pelo regime ditatorial de
então.
As obras e a luta destes artistas mostram-nos que de facto a
arte é como uma gota de água que cai no deserto e que, parecendo não ter um
efeito imediato, nos faz refletir e nos desperta para as transformações sociais
e políticas necessárias.
Por fim chegámos ao quinto e último núcleo, “Escrever é
lutar. Escritores neorrealistas e a Revolução de Abril”, onde é abordada a
relação entre os escritores neorrealistas e a Revolução dos Cravos.
Um dos atributos mais marcantes do Neorrealismo na literatura
é o foco na realidade social, expondo as injustiças sociais, a pobreza e a luta
pela sobrevivência. As personagens são gente comum, que enfrenta as
dificuldades diárias da vida das classes trabalhadoras. Para que a mensagem
social fosse compreendida por vastas camadas da população, os autores
utilizavam uma linguagem simples e acessível.
Recorde-se que, no contexto português, o Neorrealismo começa
a ganhar força na década de 1940, em plena ditadura do Estado Novo, refletindo
a realidade social que se vivia ao mesmo tempo que se tornou numa forma de
resistência cultural e de denúncia do pesadelo fascista.
Aqui pudemos apreciar fotografias e notícias, discursos em
reuniões, poemas, crónicas, cartas e outros registos de autores como, Soeiro
Pereira Gomes, Alves Redol, Mário Sacramento, Joaquim Namorado, Mário Dionísio,
Alexandre Cabral, Manuel da Fonseca, Armindo Rodrigues, Sidónio Muralha,
Fernando Namora, Antunes da Silva, entre outros.
Esta foi uma visita muito interessante que nos conduziu numa
viagem pelo período histórico da resistência, que a nossa geração viveu
intensamente, e cuja memória não podemos deixar que se apague.
Para finalizar, numa simples homenagem a todos os artistas do
movimento neorrealista, transcrevemos um texto de Alves Redol do seu livro Gaibéus.
“… Até mesmo os momentos de descanso mantêm o
trabalhador nesta condição: “Cada homem na eira não passa de um volante, uma
correia ou um braço da ciranda. Quando o apito soar, o volante achará os raios,
a correia e o braço da ciranda adormecerão. Os homens irão ajudar à carga e
pensar na vida. Nos corpos de alguns correrá o frio das sezões; e os cérebros,
libertos da vertigem comunicativa das máquinas, encontrarão pensamentos. Mas os
seus pensamentos não sabem ainda acalentar fadigas. Nas poisadas, a vida torna-se
mais negra. De novo se acham homens, e gostariam de ficar máquinas para sempre
- as máquinas não pensam”.
Nota final: Com a alma cheia, havia que alimentar o corpo, pois a manhã
já ia avançada. E tudo terminou numa animada refeição no restaurante “O Comboio
“, previamente reservado pelas nossas diligentes Coordenadoras.